Práticas de caridade e assistência nos alvores da Modernidade.
Contextos sociais e políticos
«(…) A primeira, baseada no princípio da obrigação
dos mais abastados em relação aos pobres, com outros fins que não apenas a salvação
da alma ou o proveito moral e social dos ricos, já estava completamente espelhada
no Compromisso da Misericórdia de Lisboa, de 1498. A reforma moral, tão cara a este humanismo, e com ela a defesa
do trabalho como valor estruturante da sociedade, chegava ao século XVI português
através da Lei das Sesmarias. A
gestão das questões sociais pelos poderes públicos, o último dos três elementos
considerados por Todd, foi um traço marcante em Portugal. O carácter nacional das
medidas que restringiam a mendicidade foi, porventura, o mais expressivo sinal desse
fenómeno. Depois da Lei das Sesmarias,
e para além da legislação manuelina, sobressai, na mesma sequência cronológica,
o alvará de 4 de Novembro de 1544.
Designado pelo monarca Sebastião I como Lei
dos Vadios, e considerado por alguns reformadores sociais dos finais do
século XVIII um modelo de boas práticas, começou por ser de aplicação restrita ao
lugar em que Sua Alteza estivesse com sua corte, estendendo-se em 1558, ainda que com algumas alterações,
a todo o país. Alicerçado na associação entre a mendicidade e a ociosidade, num
tempo que ainda não questionava os efeitos da falta de trabalho, o texto elenca
as medidas repressivas numa hierarquia progressiva, apresentada de forma clara e
simples: a primeira vez que os transgressores fossem identificados deviam ser
presos, açoitados publicamente e expulsos da localidade onde tivessem cometido o
delito da mendicidade não autorizada; caso voltassem a ser apanhados, para além
dos açoites e da prisão, perderiam as suas propriedades, se as possuíssem, com condenação
a degredo perpétuo, para fora das fronteiras da metrópole; à terceira
prevaricação, o degredo teria o Brasil como destino, por um período de dez
anos, o que na prática poderia significar que nunca mais regressariam a Portugal.
Os procedimentos conducentes à concessão de autorizações
para esmolar continuavam o modelo tardo-medieval, enfatizando a aposta na auto-suficiência
do pobre, mesmo quando deficiente; para tal indicava-se um conjunto de possíveis
ocupações, a aplicar conforme o grau de limitação física: por exemplo, os doentes dos pés, deveriam aprender o ofício
de alfaiate, sapateiro ou outros idênticos; os portadores de defeitos nas mãos, seriam encaminhados para
junto de religiosos, e os cegos para ajudarem ferreiros ou serralheiros para lhes tangerem os foles. Todo o processo
era caracterizado por um elevado nível de burocratização e obrigatório o seu registo
escrito. Para alcançar o estatuto de mendigo encartado, o pobre teria de fazer prova
de se ter confessado; a renovação da licença, no final do ano, ficava dependente
do conhecimento do pai-nosso, avé-maria, credo e salvé-rainha. Em nenhuma circunstância
os estrangeiros poderiam ser autorizados a mendigar, mesmo em caso de óbvia necessidade
ou de justificação aceitável, uma orientação
que Córdova, à semelhança de outras cidades castelhanas, já praticava desde a década
de 20. A difusão da informação sobre os dias e locais de exame dos potenciais
mendigos cometia-a a Coroa aos próprios pobres e às suas redes sociais.
São várias as
pontes que o alvará de 1544 estabelece
com as estruturas assistenciais em construção. A mais imediata é o cuidado concedido
aos mendigos doentes, que passavam a ser compulsivamente hospitalizados, mas a verdadeira
novidade residia na protecção das crianças. Depois de institucionalizado o apoio
aos expostos por Manuel I (nas Ordenações
de 1512),
este diploma reforçava a atenção a prestar às crianças exploradas pelos mendigos
que as tomavam como suas acompanhantes e estendia até elas as condições
oferecidas pela lei aos expostos, quer ao nível da criação, quer da aprendizagem
de ofício, atingidos os sete anos, ou a colocação no mercado de trabalho. Uma terceira
determinação, talvez a mais importante na perspectiva desta análise, cometia à Confraria
da Corte, criada durante a estada da família real em Almeirim, em 1527, para assistir os pobres que
acompanhavam a corte nas suas deslocações, especialmente os cavaleiros e viúvas
de militares que tinham servido a Coroa em África, a responsabilidade pela disponibilização
de instalações, iluminadas e aquecidas, onde os pedintes encartados pudessem
pernoitar. Significava isto que o monarca transpunha para a lei a prática dos hospícios
e de alguns hospitais, assumindo que a itinerância dos mendigos os excluía dos mecanismos
formais de assistência regular». In Laurinda Abreu, O Poder e os Pobres, As
Dinâmicas Políticas e Sociais da Pobreza e da Assistência em Portugal, Séculos
XVI-XVIII, Gradiva, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-616-596-3.
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