O
Teor Violento da Vida
«(…) O povo sentiu-se particularmente comovido
ao ver os seis pajens do rei montados em cavalos completamente cobertos de
veludo verde. Um dos pajens, segundo constava, deixou de comer e beber durante
quatro dias. E Deus sabe quão magoados e piedosos lamentos eles fizeram
pranteando a morte de seu amo. Solenidades de carácter político davam também
lugar a lágrimas abundantes. Um embaixador do rei de França várias vezes rompeu
em choro enquanto se dirigia, num discurso cortês, a Filipe, o Bom. No encontro dos reis de França e
de Inglaterra na recepção ao delfim, em Bruxelas; na partida de João Coimbra da
corte da Borgonha, todos os espectadores derramaram sentidas lágrimas.
Chastellain descreve o delfim, o futuro Luís XI, durante o seu exílio voluntário
em Brabante, como sendo sujeito a frequentes ataques de choro. Há por certo
algum exagero nestas narrações dos cronistas. Ao descrever a emoção causada
pela mensagem dos embaixadores ao Congresso da Paz, em Arras, em 1435, Jean Germain, bispo de Châlons,
diz que os ouvintes se atiraram ao
chão soluçando e gemendo. As coisas não terão acontecido assim, por certo, mas
assim julgou o bispo conveniente escrevê-las, e esse exagero palpável deixa ver
um fundo de verdade. Tal como para os sentimentais do século XVIII, as lágrimas
eram então consideradas elegantes e honrosas. Mesmo hoje em dia o espectador
indiferente de uma procissão pública se sente às vezes, inexplicavelmente,
comovido até às lágrimas. Numa época cheia de reverência religiosa em face de
toda a pompa ou solenidade, esta propensão aceita-se como perfeitamente
natural.
Um simples exemplo bastará para mostrar o
grau de excitação que distingue a Idade Média do nosso tempo. Dificilmente
conceberemos jogo mais pacífico do que o xadrez. No entanto, tal como a
propósito das canções de gesta, alguns séculos antes, Olivier de la
Marche menciona frequentes querelas em consequência desse jogo; o mais sensato perde a paciência a jogá-lo.
Um historiador da Idade Média que confiasse demasiadamente nos documentos
oficiais, que raramente se referem às paixões, excepto à violência e à cupidez,
arriscava-se, por vezes, a perder de vista a diferença de tonalidade que existe
entre a vida daquela época e a dos nossos dias. Tais documentos far-nos-iam às
vezes esquecer a veemência patética da vida medieval para a qual os cronistas,
não obstante as deficiências no registo dos factos, nos chamam sempre a
atenção.
A vida mantinha ainda, de diversos
aspectos, as cores dos contos de fadas; quer dizer, para os contemporâneos
aparecia com esse colorido. Os cronistas da corte eram homens cultos e
observavam de perto os príncipes cujos feitos registavam, mas esses mesmos dão
a essas reportagens um ar de certo modo arcaico e hierático. A seguinte
história, contada por Chastellain, serve para o provar. O jovem conde de
Charolais, mais tarde Carlos, o Temerário,
ao chegar a Gorcum, na Holanda, em viagem para Sluys, toma conhecimento de que
seu pai, o duque, se apropriou de todas as pensões e rendimentos que lhe
pertencem. Chamou imediatamente toda a sua corte, mesmo os moços de cozinha, e
num comovido discurso comunicou-lhes aquela desventura, insistindo no respeito
pelo seu mal-aconselhado pai e na sua inquietação pelo bem-estar de toda a
comitiva. Que todos os que têm meios de fortuna para viver fiquem junto dele à
espera de melhores tempos; que os pobres se vão embora livremente e que só
voltem quando souberem que a fortuna do conde se restabeleceu; todos retomarão
os seus antigos lugares e o conde os recompensará pela sua paciência.
Ouviram-se então gritos e soluços e em uníssono proclamaram: Todos nós, todos nós, meu senhor, viveremos
e morreremos contigo. Profundamente comovido, Carlos aceita a devoção
deles: Pois bem, ficai e sofrei, e eu me sacrificarei
por vós de preferência a que passeis necessidades. Os nobres vieram então oferecer-lhe o que possuíam. Dizia
um: eu tenho mil, e outro, dez mil; eu tenho isto, eu tenho aquilo e tudo fica
ao teu serviço, e estou pronto a compartilhar tudo o que te aconteça. E deste
modo continuou tudo como antes e nem uma galinha a menos houve alguma vez na
cozinha. É manifesto que esta história foi mais ou menos retocada. O que nos
interessa é o facto de Chastellain ver o príncipe e a sua corte à maneira épica
das baladas populares. Se isto é a concepção literária de um homem, quão
brilhante não deveria parecer a vida dos reis, entrevista num quase mágico
esplendor à imaginação ingénua dos incultos!» In Johan Huizinga, O Declínio da
Idade Média, tradução de Augusto Abelaira,1960, Editorial Ulisseia, 1985, 1996,
ISBN: 978-972-568-017-9.
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