domingo, 15 de novembro de 2015

Terra do Pecado (Viúva) 1947. José Saramago. «Então, que disse o doutor Viegas? Acha-te no mesmo estado, mas crê que melhorarás dentro de pouco tempo. Crê que melhorarei... Sim! Melhorarei, por certo. Maria Leonor encaminhou-se para a cama e sentou-se à beira do doente»

jdact e wikipedia

Aviso
«O autor é um rapaz de vinte e quatro anos, calado, metido consigo, que ganha a vida como praticante de escrita nos serviços administrativos dos Hospitais Civis de Lisboa, depois de ter estado a trabalhar durante mais de um ano como aprendiz de serralharia mecânica nas oficinas dos ditos hospitais. Tem poucos livros em casa porque o ordenado é pequeno, mas leu na Biblioteca Municipal das Galveias, tempos atrás, tudo quanto a sua compreensão logrou alcançar. Ainda estava solteiro quando um caridoso colega da repartição, segundo-oficial, de apelido Figueiredo, lhe emprestou trezentos escudos para comprar os livrinhos da colecção Cadernos da Editorial Inquérito. A sua primeira estante foi uma prateleira interior do guarda-louça familiar. Neste ano de 1974 em que estamos nascer-lhe-á uma filha, a quem medievalmente dará o nome de Violante, e publicará o romance que tem andado a escrever, esse a que chamou A Viúva mas que vai aparecer à luz do dia com um título a que nunca se há-de acostumar. Como no tempo em que viveu na aldeia já havia plantado umas quantas árvores, pouco mais lhe resta para fazer na vida. Supõe-se que escreveu este livro porque numa antiga conversa entre amigos, daquelas que têm os adolescentes, falando uns com os outros do que gostariam de ser quando fossem grandes, disse que queria ser escritor. Em mais novo o seu sonho era ser maquinista de caminho-de-ferro, e se não fosse por causa da miopia e da diminuta fortaleza física, imaginando que não perderia a coragem entretanto, teria ido para aviador militar. Acabou em manga-de-alpaca do último grau da escala hierárquica e tão cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à pequena mesa em que trabalha, ao lado da prensa das cópias. Não sabe dizer como lhe veio depois a ideia de escrever a história de uma viúva ribatejana, ele que de Ribatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se existe o menos que nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar. Também não sabe explicar por que foi que escolheu a Parceria António Maria Pereira quando, com notável atrevimento, sem padrinhos, sem empenhos, sem recomendações, se decidiu a procurar um editor para o seu livro. E ficará já havia plantado umas quantas árvores, pouco mais lhe resta para fazer na vida. E ficará pela derrota de ver trocado o nome a esse outro filho, o autor baixou a cabeça e foi dali anunciar à família e aos amigos que as portas da literatura portuguesa se tinham aberto para ele. Não podia adivinhar que o livro terminaria a pouco lustrosa vida nas padiolas. Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao autor de A Viúva». In J. S.

«Um enjoativo cheiro a remédios adensava a atmosfera do quarto. Respirava-se com dificuldade. O ar, demasiadamente aquecido, mal penetrava nos pulmões do doente, de cujo corpo se divisavam os contornos por baixo das cobertas desalinhadas, donde se exalava um odor a febre que entontecia. Da sala do lado, amortecido pela espessura da porta fechada, vinha um surdo rumor de vozes. O doente oscilava devagar a cabeça sobre a almofada manchada de suor, num gesto de fadiga e de sofrimento. As vozes afastaram-se pouco a pouco. Em baixo, uma porta bateu e estropearam as patas dum cavalo. O ruído da areia esmagada ao trotar do animal cresceu de súbito sob a janela do quarto e cessou logo como se os cascos pisassem lama. Um cão ladrou. Por detrás da porta ouviram-se passos cautelosos e medidos. O trinco da fechadura rangeu de leve, a porta abriu-se e deu passagem a uma mulher que se aproximou da cama. O doente, despertado da sua modorra inquieta, perguntou, num sobressalto: Quem está aí?, e depois, reparando: Ah, és tu! Onde está a senhora? A senhora foi acompanhar o senhor doutor à porta. Não deve tardar... Respondeu-lhe um suspiro. O doente olhou com tristeza as longas mãos, magras e amarelas como as mãos duma velha.
Sempre é verdade que estou muito mal, Benedita? E que, segundo todas as aparências, não devo salvar-me desta? Credo, senhor Ribeiro! Por que fala em morrer? Não é isso que diz o senhor doutor... Meu irmão?... Sim, senhor! E também o senhor doutor Viegas, que saiu agora. Não deve ter passado ainda o portão da quinta. Deus Nosso Senhor o guarde de maus encontros quando passar ao pé do cemitério, que ainda vai para as bandas dos Mouchões!... O doente sorriu. Um sorriso vago, que lhe alegrou fugidiamente o rosto emagrecido e que lhe engelhou os lábios finos e secos. Passou a mão pela barba densa, raiada de branco no queixo, e respondeu: Benedita, Benedita, olha que não é razoável falar de cemitérios a um doente grave, que vê com frequência demasiada, através da janela do quarto, os muros de um dos tais!...
Benedita desviou o rosto e enxugou duas lágrimas que lhe assomavam às pálpebras cansadas. Choras? Não posso ouvir falar nessas coisas, senhor Ribeiro. O senhor não pode morrer! Não posso morrer? Tonta!... Bem vês que posso... Todos nós podemos! Benedita tirou o lenço da algibeira do avental e limpou, devagar, os olhos húmidos. Depois dirigiu-se para a cómoda, onde uma imagem da Virgem parecia mover-se na oscilação da luz das velas que a rodeavam, juntou as mãos e murmurou: Ave, Maria, cheia de graça... O silêncio caiu no quarto. Apenas o sussurro dos lábios de Benedita o interrompia no murmurar da oração. Do fundo do aposento saiu a voz do doente, um tanto enfraquecido e trémula: Que bela fé tu tens, Benedita! E essa a verdadeira crença, a que não discute, a que se conforma e acha em tudo a própria explicação.Não entendo, senhor Ribeiro. Creio e nada mais... Sim!... Crês e nada mais... Não ouves passos? Deve ser a senhora dona Maria Leonor. A porta descerrou-se lentamente e entrou Maria Leonor, vestida de escuro, com uma mantilha de renda negra sobre os cabelos claros e brilhantes.
Então, que disse o doutor Viegas? Acha-te no mesmo estado, mas crê que melhorarás dentro de pouco tempo. Crê que melhorarei... Sim! Melhorarei, por certo. Maria Leonor encaminhou-se para a cama e sentou-se à beira do doente. Os olhos dele, febris, procuraram os dela. Num enternecimento brusco, perguntou: Tu choraste? Não, Manuel! Por que havia de chorar? Não estás pior, daqui a algum tempo estarás curado... Que motivos terei para chorar? A passarem-se as coisas como dizes, não tens, de facto, motivos... Benedita, que estivera absorta, acabando a oração, aproximou-se dos dois: Vou ver se os meninos dormem, minha senhora. Vim de lá agora e estavam a dormir. Mas vai, vai... Com licença!» In José Saramago, Terra do Pecado (Viúva), Editorial Minerva, 1947, Editorial Caminho, 1997, 2010, ISBN-978 972 211 145-4.

Cortesia de EMinerva/ECaminho/JDACT