Quem
vos venceu
«(…) Nos dias que se seguiram à
conquista de Lisboa, os espoliados tiveram de comprar aos saqueadores os
mantimentos que lhes tinham roubado: o pão, o azeite, o gado. E também os
escravos. Alguns até tiveram de comprar as suas mulheres e os filhos. No lote dos
presos resgatados estavam o conde do Redondo João Coutinho e o inquisidor de Évora
Lopo Soares Albergaria que, ao repicar dos sinos, acudia a cavalo, espingarda no
arção da sela, acompanhado por um pajem, também a cavalo e com espingarda, e homens
de pé com os seus piques. No princípio, os soldados do duque de Alba ficaram alojados
fora da cidade, mas guardavam as portas e podiam entrar e sair. As gentes dos campos
insultavam os soldados que ficavam para trás e enforcaram alguns.
Auto de (des)obediência
A 11 de Setembro de 1580, dezassete dias depois da batalha
de Alcântara e com as tropas castelhanas no terreno, foi assinado pelos
novos oficiais da Câmara de Lisboa, nas casas onde pousava o duque de Alba, o auto
de obediência e de entrega da cidade a Filipe II de Castela. Assinaram o duque de
Alba, Damião de Aguiar e os novos vereadores, o procurador Sebastião Lucena, Luís
Francisco, ourives do ouro, António Nobre, barbeiro, Francisco Roiz, tosador,
Gaspar Roiz, sapateiro, procuradores dos mesteres, e Salvador Roiz, alfaiate,
juiz da Casa dos Vinte e Quatro. Na assinatura do auto, em nome da
cidade e da Câmara, falou Damião de Aguiar, que tinha sido deposto pelo senhor António e se manterá na crista da onda até
à morte do rei Habsburgo. Disse: a Filipe pertencia, justa e direitamente, a sucessão, propriedade e jurisdição dos reinos e
senhorios de Portugal e do Algarve e de todas as coisas a eles pertencentes.
E recebiam-no por rei e senhor natural. Em reconhecimento desse direito, entregavam-lhe,
na pessoa do duque de Alba, a posse da cidade e do seu termo e juravam pela cruz
e os Santos Evangelhos em que punham as mãos. Testemunharam o acto Paulo Afonso,
Pedro Barbosa, que seria assassinado em Lisboa, tal como, anos mais tarde, o seu
filho Miguel Vasconcelos, e Jerónimo Pereira Sá, todos do Conselho d'el-rei e
seus desembargadores do Paço.
Dois dias depois a Câmara mandou apregoar:
segunda-feira ninguém trabalhe e armem as ruas e as janelas. Não as queriam armar.
À duas horas da tarde, os vereadores, a Casa dos 24, fidalgos, doutores e alguns cidadãos, poucos, sem mais ninguém,
e as trombetas, atabales e charamelas, saíram com a bandeira da cidade, levada por
um Tomé Silva. Gritava o Tomé: Real! Real! Por el-rei Filipe, rei de Portugal!
Respondiam os acompanhantes sem haver mais homem, mulher nem menino que o quisesse
dizer. Os que acompanhavam a bandeira diziam aos moços: Real! Eles
respondiam, em altas vozes, que não gritavam. Por onde a bandeira passava, as mulheres
e os homens choravam e lastimavam-se. António Cascais colocou por sua mão a bandeira
filipina, com Castela ao centro, no alto dos Paços do Castelo. No rio, as galés
dispararam. Na volta, o cortejo desceu pela Mouraria até à Rua Nova e voltou à Câmara.
Em todo o caminho nenhum homem ou mulher ou menino os quis acompanhar nem dizer
Real, cousa tão extraordinária entre moços e meninos que até neles houve o sentimento
natural da perda de sua pátria e liberdade,
havendo tal rancor de ódio, portugueses com castelhanos, que cada dia não
deixava de haver na cidade mil brigas uns com outros.
Submissão do Centro e do Norte
Na sua fuga, após a batalha de Alcântara,
o Prior do Crato parou em São João da Talha para curar os ferimentos
sofridos e passou pela Azambuja a caminho de Santarém. Nesta vila havia novos vereadores
que, reunidos com os seus apoiantes na igreja de Marvila, decidiram enviar
procuradores ao duque de Alba e reconhecer o rei Filipe. António seguiu então por Tomar até Coimbra. Acompanhavam-no muita gente
de pé e de cavalo e muitos negros dos que escaparam das mãos do inimigo. Em Coimbra,
o corregedor e o conservador, acompanhados por 14 homens com espingardas, tentaram
prender o meirinho que proclamara António.
Acudiu muita gente ao Terreiro de Santa Cruz a travá-los e a gritar: Viva el-rei
António! O corregedor ordenou aos espingardeiros que disparassem. Choveram pedradas.
Corregedor e conservador salvaram-se na fuga e a multidão proclamou António na porta de Santiago. Na região
de Coimbra, o rei Prior recrutou 5000
a 6000 homens. Entrou em Montemor-o-Velho e avançou para Aveiro. A vila aclamara-o
em 4 de Julho mas, depois da derrota de Alcântara, proclamara Filipe.
António dispunha de uns
10 000 homens, mas nem entendia o estado em que estava, nem tinha dinheiro, nem
soldados práticos. Os que tinha eram do povo, tirados das tendas e da lavoura, que
não sabiam nenhuma milícia nem aprendido a perder o medo, como quem não vira nunca
a guerra, tirando alguns bem poucos. Também sentiam que boa parte dos grandes fidalgos,
dos bispos e dos arcebispos apoiavam, abertamente ou envergonhados, o rei Filipe
I. Quando isto escrevo, diz João Castro, neto do homónimo vice-rei da Índia, me vou rindo da zombaria que éramos, sem armas,
sem munições, sem ordem, sem obediência, sem cavalos, e enfim sem nada do
necessário». In António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial Caminho, 2015, ISBN
978-972-212-740-0.
Cortesia de Caminho/JDACT