quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Os Filipes. António Borges Coelho. «… me vou rindo da zombaria que éramos, sem armas, sem munições, sem ordem, sem obediência, sem cavalos, e enfim sem nada do necessário…»

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Quem vos venceu
«(…) Nos dias que se seguiram à conquista de Lisboa, os espoliados tiveram de comprar aos saqueadores os mantimentos que lhes tinham roubado: o pão, o azeite, o gado. E também os escravos. Alguns até tiveram de comprar as suas mulheres e os filhos. No lote dos presos resgatados estavam o conde do Redondo João Coutinho e o inquisidor de Évora Lopo Soares Albergaria que, ao repicar dos sinos, acudia a cavalo, espingarda no arção da sela, acompanhado por um pajem, também a cavalo e com espingarda, e homens de pé com os seus piques. No princípio, os soldados do duque de Alba ficaram alojados fora da cidade, mas guardavam as portas e podiam entrar e sair. As gentes dos campos insultavam os soldados que ficavam para trás e enforcaram alguns.

Auto de (des)obediência
A 11 de Setembro de 1580, dezassete dias depois da batalha de Alcântara e com as tropas castelhanas no terreno, foi assinado pelos novos oficiais da Câmara de Lisboa, nas casas onde pousava o duque de Alba, o auto de obediência e de entrega da cidade a Filipe II de Castela. Assinaram o duque de Alba, Damião de Aguiar e os novos vereadores, o procurador Sebastião Lucena, Luís Francisco, ourives do ouro, António Nobre, barbeiro, Francisco Roiz, tosador, Gaspar Roiz, sapateiro, procuradores dos mesteres, e Salvador Roiz, alfaiate, juiz da Casa dos Vinte e Quatro. Na assinatura do auto, em nome da cidade e da Câmara, falou Damião de Aguiar, que tinha sido deposto pelo senhor António e se manterá na crista da onda até à morte do rei Habsburgo. Disse: a Filipe pertencia, justa e direitamente, a sucessão, propriedade e jurisdição dos reinos e senhorios de Portugal e do Algarve e de todas as coisas a eles pertencentes. E recebiam-no por rei e senhor natural. Em reconhecimento desse direito, entregavam-lhe, na pessoa do duque de Alba, a posse da cidade e do seu termo e juravam pela cruz e os Santos Evangelhos em que punham as mãos. Testemunharam o acto Paulo Afonso, Pedro Barbosa, que seria assassinado em Lisboa, tal como, anos mais tarde, o seu filho Miguel Vasconcelos, e Jerónimo Pereira Sá, todos do Conselho d'el-rei e seus desembargadores do Paço.
Dois dias depois a Câmara mandou apregoar: segunda-feira ninguém trabalhe e armem as ruas e as janelas. Não as queriam armar. À duas horas da tarde, os vereadores, a Casa dos 24, fidalgos, doutores e alguns cidadãos, poucos, sem mais ninguém, e as trombetas, atabales e charamelas, saíram com a bandeira da cidade, levada por um Tomé Silva. Gritava o Tomé: Real! Real! Por el-rei Filipe, rei de Portugal! Respondiam os acompanhantes sem haver mais homem, mulher nem menino que o quisesse dizer. Os que acompanhavam a bandeira diziam aos moços: Real! Eles respondiam, em altas vozes, que não gritavam. Por onde a bandeira passava, as mulheres e os homens choravam e lastimavam-se. António Cascais colocou por sua mão a bandeira filipina, com Castela ao centro, no alto dos Paços do Castelo. No rio, as galés dispararam. Na volta, o cortejo desceu pela Mouraria até à Rua Nova e voltou à Câmara. Em todo o caminho nenhum homem ou mulher ou menino os quis acompanhar nem dizer Real, cousa tão extraordinária entre moços e meninos que até neles houve o sentimento natural da perda de sua pátria e liberdade, havendo tal rancor de ódio, portugueses com castelhanos, que cada dia não deixava de haver na cidade mil brigas uns com outros.

Submissão do Centro e do Norte
Na sua fuga, após a batalha de Alcântara, o Prior do Crato parou em São João da Talha para curar os ferimentos sofridos e passou pela Azambuja a caminho de Santarém. Nesta vila havia novos vereadores que, reunidos com os seus apoiantes na igreja de Marvila, decidiram enviar procuradores ao duque de Alba e reconhecer o rei Filipe. António seguiu então por Tomar até Coimbra. Acompanhavam-no muita gente de pé e de cavalo e muitos negros dos que escaparam das mãos do inimigo. Em Coimbra, o corregedor e o conservador, acompanhados por 14 homens com espingardas, tentaram prender o meirinho que proclamara António. Acudiu muita gente ao Terreiro de Santa Cruz a travá-los e a gritar: Viva el-rei António! O corregedor ordenou aos espingardeiros que disparassem. Choveram pedradas. Corregedor e conservador salvaram-se na fuga e a multidão proclamou António na porta de Santiago. Na região de Coimbra, o rei Prior recrutou 5000 a 6000 homens. Entrou em Montemor-o-Velho e avançou para Aveiro. A vila aclamara-o em 4 de Julho mas, depois da derrota de Alcântara, proclamara Filipe.
António dispunha de uns 10 000 homens, mas nem entendia o estado em que estava, nem tinha dinheiro, nem soldados práticos. Os que tinha eram do povo, tirados das tendas e da lavoura, que não sabiam nenhuma milícia nem aprendido a perder o medo, como quem não vira nunca a guerra, tirando alguns bem poucos. Também sentiam que boa parte dos grandes fidalgos, dos bispos e dos arcebispos apoiavam, abertamente ou envergonhados, o rei Filipe I. Quando isto escrevo, diz João Castro, neto do homónimo vice-rei da Índia, me vou rindo da zombaria que éramos, sem armas, sem munições, sem ordem, sem obediência, sem cavalos, e enfim sem nada do necessário». In António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.

Cortesia de Caminho/JDACT