Quem
vos venceu
«(…) O frade exprimia o
sentimento geral do povo miúdo e médio e também dos frades, dos clérigos e duma
parte significativa dos fidalgos: a alta nobreza faltara aos seus deveres como
ordem militar, soçobrando ante as dádivas e as promessas e encolhendo-se ante o
exército e a armada de Filipe II. Muitos fidalgos e milhares de soldados
estavam ainda no cativeiro marroquino ou tinham sido vendidos como escravos. E
o único pretendente nacional a levantar a bandeira contra o rei de Castela, António, Prior do Crato, neto de
Manuel I e filho do popular infante Luís, tinha a mácula de bastardia e a
qualidade de meio cristão-novo. Num momento de desespero, entre os fidalgos que
o acompanharam, houve quem dissesse: prouvera a Deus fosse antes filho duma negra. Do sermão do frade desafinavam outras
vozes. Os filipistas, letrados, fidalgos e quase todo o alto clero secular,
defendiam, pela calada e abertamente, que o monarca castelhano era o herdeiro legítimo
da coroa e devia governar. Vinham do partido da rainha dona Catarina que,
através dos casamentos, empurrara o país para a união ibérica. Agora,
impulsionados pelos perigos, pelas promessas, a propaganda, a compra e a
vitória militar, tinham crescido em número. Alguns estavam ligados por laços de
sangue às famílias do outro lado da fronteira. A união prometia-lhes uma
estrada para o crescimento das suas casas, mas ao mesmo tempo, como veremos,
receavam que a alta nobreza espanhola, muito mais poderosa, viesse disputar a
sua parte do bolo doméstico.
Outros fidalgos estavam à espera
do resultado. Distribuíam os familiares pelos dois lados. E quase todos viam
com apreensão a febre do povo miúdo e dos médios e temiam os danos que a divisão
provocaria no Império e na Igreja. Alguns mercadores de grosso trato pensaram
que a prata das Américas iria correr
pelas ruas de Lisboa e se abririam os mercados do outro lado do Atlântico,
embora muita prata corresse já pela Rota do Cabo e entrasse nos circuitos
financeiros. Na Carta sobre a Sucessão
do Reino, o bispo Jerónimo Osório emite uma opinião, partilhada
certamente pelos bispos e arcebispos e por muitos nobres e letrados
portugueses. Em seu entender, eram três as razões principais que os impeliam a
aceitar a realeza de Filipe: o bem geral da cristandade católica; a conservação
de Portugal, isto é, as vantagens para o reino e o seu império na perspectiva
de então dos grupos dominantes; e porque
mal podemos resistir». Em Junho de 1580,
quando o exército e a armada castelhana invadiam Portugal, uma boa parte das
cidades e vilas jurou o rei António.
A maioria dos portugueses não queria submeter-se a Castela e pretendia um rei
nacional. E não só a plebe e os estratos médios. Também muitos e altos fidalgos
e letrados.
O direito permitiu a Carlos V
herdar múltiplos Estados europeus como quem herda uma casa ou uma quinta. Mas
Portugal gozava de independência política há quatro séculos e meio, com muito
sangue derramado na preservação da sua independência; e os juristas, que
estavam do lado de António,
sustentavam que Portugal gozava do direito de eleger o rei. Assim o fizera nas
Cortes de Coimbra de 1385 quando elegeu
rei o Mestre de Avis e até na proclamação do cardeal-rei Henrique. De qualquer
dos modos, meio ano passado sobre a morte do cardeal-rei Henrique, Filipe II
não teve outro remédio senão avançar para a conquista. Lisboa, a cabeça do
reino, caiu pela força das armas e não só pela força dos argumentos jurídicos e
do dinheiro. E no rescaldo da batalha de Alcântara, o termo e a própria cidade
foram sujeitas a saque. Durante dias os soldados castelhanos, alemães,
italianos, até turcos, e alguns portugueses assaltaram as quintas, as igrejas e
as casas dos arrabaldes. Havia lá muita riqueza. Os conventos e igrejas que conseguiram
impedir o roubo tiveram de pagar primeiro. Só num mosteiro os soldados colheram
mais de 400 000 ducados.
Não
se pode já fazer outra coisa senão enforcar estes velhacos que aqui temos, os
mais notáveis, e fazer enforcar outros em Santarém e em Tomar e em mais
povoados onde foi cometido o crime assinalado, ou seja, o de
lesa-majestade, escreva o duque de Alba, comandante dos invasores. Em Lisboa
lavrou uma pilhagem disfarçada. Diziam: tomaste o partido de António, e prendiam o acusado e
ficavam-lhe com os bens. Não escaparam ao assalto os mosteiros de São Bento, de
São Roque e de Nossa Senhora da Graça, onde os moradores tinham recolhido parte
da sua riqueza. Roubaram as mercadorias da Ribeira e os navios da armada de António. Escapou a frota da Índia e o
edifício da Alfândega». In António Borges Coelho, Os Filipes,
Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.
Cortesia de Caminho/JDACT