sábado, 7 de novembro de 2015

Saudade da Literatura. Crónica. Antologia. 1984-2012. Manuel António Pina. «Por isso Oliveira de Figueira não terá a homenagem que merece. Nenhum banco se lembrará de cunhar em moeda, nenhum estudante pedirá uma bolsa à Gulbenkian, nenhuma Câmara lhe porá o nome numa rua, nem a estátua numa praça»

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Louvação de Oliveira de Figueira
«Em pleno quinto centenário dos Descobrimentos, talvez seja a altura de trazer ao lume (brando, brando...) da crónica o inesquecível señor (com ñ) Oliveira de Figueira. Os leitores de Tintin conhecem-no bem de Os charutos do faraó e de outros episódios da epopeia de Hergé. Juntamente com Pedro João Santos, físico famoso e professor da Universidade de Coimbra que, em A estrela misteriosa, acompanha o repórter do Le petit vingtième na expedição ao meteorito que, afinal, não destruiu a boa e velha Terra, Oliveira de Figueira representa-nos generosamente a todos no díspar painel de personagens que o lápis e o coração do belga legaram aos outros homens. E podemos gabar-nos de que ambos pertençam à galeria dos bons. O mesmo, por exemplo, não podem fazer os gregos (o mais tenebroso inimigo de Tintin é um grego, o ricalhaço Rastopopoulos), nem os ingleses, nem os americanos, nem os franceses, nem os indianos, nem os japoneses, nem mesmo os incas, que têm gente de um lado e do outro... Como Tintin, o cronista tem encontrado Oliveira de Figueira um pouco por toda a parte onde os acasos do jornalismo e da vida o têm levado. (O que prova que Hergé sabia mais de nós e da nossa errante natureza do que poderia fazer supor o facto de, para ele ou, ao menos, para a sua obra, não haver portugueses maus). Hoje, com o que sei de Oliveira de Figueira e da sua vocação de cidadão do mundo, surpreende-me que o bíblico Adão não tenha dado de caras com ele no seu primeiro passeio solitário pelo Éden...
Em Tóquio encontrei-o à frente de um restaurante chamado Nazaré; no Alasca atrás de um aspirador, a trabalhar na limpeza do aeroporto de Anchorage; em Seul na cozinha de um escuso bar cheio de fumo e de filipinos; em Reykyavik numa loja de roupas... indianas; em Berlim num infantário; em Oslo ao volante de um táxi; em Kyoto ensinando Português numa universidade. Em Salvador da Baía e no Rio, como por todo o Brasil, Oliveira de Figueira aparece ao virar de cada esquina; em Paris, e por toda a Europa, como por toda a África, é o que se sabe: é mais fácil encontra-lo do que a um algarvio no Algarve! O homem das Arábias que, no último instante, em pleno deserto, surge, bonacheirão e cordial, em salvação de Tintin e o esconde da ira dos maus no seu impenetrável labirinto de bugigangas, tem também salvo o cronista do pecado da saudade em tudo quanto é sítio. Ao jornalista, por outro lado, Oliveira de Figueira salva-o todos os dias da rotina das notícias das agências internacionais. Há um choque de comboios em Paris? Oliveira de Figueira está, pelo menos, entre os feridos. Um atentado na África do Sul? Oliveira de Figueira ia a passar. Um assalto a um paquete no Mar Egeu? Oliveira de Figueira ia no cruzeiro com a família e viu tudo e, com um pouco de sorte, até tirou fotografias! Mesmo quando já partiu, e mesmo que já tenha partido há muitos séculos, Oliveira de Figueira deixou um rasto de simpatia e de História que protege o viajante que o segue como o escudo invisível do dentífrico. Uma vez, em Nagasaki, entrei numa loja para comprar uma garrafa de saké e um serviço de louça em que o ministrar mais tarde, em casa, com a exigível propriedade, às visitas mais requintadas. O lojista não tinha que ser especialmente perspicaz para descobrir que eu não era japonês; só teve que ser um pouco curioso para me perguntar, num inglês ainda pior do que o meu, donde era eu from. Quando soube que eu era from Portugal, os seus olhos e as suas palavras ficaram subitamente em festa: falou-me, então, da chegada dos portugueses àquelas costas muitos séculos atrás, em estranhos barcos à vela, da forma como por lá se foram ficando e de como venderam às gentes da terra, o famoso bazar de Oliveira de Figueira!, coisas dispersas e ideias tão singulares como fabricar pão, espingardas, vitrais coloridos ou fazer chá. E, num arroubo de reconhecimento e cordialidade (nunca um português lhe tinha entrado pela loja, e até a família fora chamar lá dentro para me ver!) ofereceu-me tudo o que eu lhe queria comprar e embrulhou-mo num chamejante papel de seda amarelo.
Mas o episódio não acaba aqui. Quando, no hotel, contei o sucedido aos outros portugueses que comigo viajavam, a expedita alma comerciante de Oliveira de Figueira acordou alvoroçadamente neles, vinda do fundo dos tempos. Todos queriam ir também à loja (eu é que lhes não disse onde era!) onde os portugueses eram very welcome para terem saké e jarrinhas de porcelana de borla... Infelizmente, a imprevisível Comissão dos Descobrimentos, que para aí gere milhões com a falta de bom senso que se sabe, deve ser mais leitora de La Salade do que de Hergé. Por isso Oliveira de Figueira não terá a homenagem que merece. Nenhum banco se lembrará de cunhar em moeda os seus dalinianos bigodes, nenhum conferencista lhe dedicará uma palestra, nenhum estudante pedirá uma bolsa à Gulbenkian para lhe seguir o rasto através dos continentes, nenhuma Câmara lhe porá o nome numa rua, nem a estátua numa praça. A homenagem da crónica, em letra impressa, não ressalvará o resto; que, ao menos, sirva de efémera memória da sua passagem generosa e corajosa pelos perplexos mundos da nossa infância e do nosso coração». In Manuel António Pina, Jornal de Notícias, 23/07/1988.

In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia, 1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN 978-972-37-1684-9.

Cortesia de AssírioAlvim/JDACT