Louvação de Oliveira de Figueira
«Em pleno quinto centenário
dos Descobrimentos, talvez seja a altura de trazer ao lume (brando, brando...) da
crónica o inesquecível señor (com ñ) Oliveira de Figueira. Os leitores de Tintin
conhecem-no bem de Os charutos do faraó
e de outros episódios da epopeia de Hergé. Juntamente com Pedro João Santos, físico
famoso e professor da Universidade de Coimbra que, em A estrela misteriosa, acompanha o repórter do Le petit vingtième na expedição ao meteorito
que, afinal, não destruiu a boa e velha Terra, Oliveira de Figueira representa-nos
generosamente a todos no díspar painel de personagens que o lápis e o coração do
belga legaram aos outros homens. E podemos gabar-nos de que ambos pertençam à galeria
dos bons. O mesmo, por exemplo, não podem fazer os gregos (o mais tenebroso inimigo
de Tintin é um grego, o ricalhaço Rastopopoulos), nem os ingleses, nem os americanos,
nem os franceses, nem os indianos, nem os japoneses, nem mesmo os incas, que têm
gente de um lado e do outro... Como Tintin, o cronista tem encontrado Oliveira de
Figueira um pouco por toda a parte onde os acasos do jornalismo e da vida o têm
levado. (O que prova que Hergé sabia mais de nós e da nossa errante natureza do
que poderia fazer supor o facto de, para ele ou, ao menos, para a sua obra, não
haver portugueses maus). Hoje, com o que sei de Oliveira de Figueira e da sua vocação
de cidadão do mundo, surpreende-me que o bíblico Adão não tenha dado de caras com
ele no seu primeiro passeio solitário pelo Éden...
Em Tóquio encontrei-o à frente
de um restaurante chamado Nazaré; no Alasca atrás de um aspirador, a trabalhar
na limpeza do aeroporto de Anchorage; em Seul na cozinha de um escuso bar cheio
de fumo e de filipinos; em Reykyavik numa loja de roupas... indianas; em Berlim
num infantário; em Oslo ao volante de um táxi; em Kyoto ensinando Português numa
universidade. Em Salvador da Baía e no Rio, como por todo o Brasil, Oliveira de
Figueira aparece ao virar de cada esquina; em Paris, e por toda a Europa, como
por toda a África, é o que se sabe: é mais fácil encontra-lo do que a um algarvio
no Algarve! O homem das Arábias que, no último instante, em pleno deserto, surge,
bonacheirão e cordial, em salvação de Tintin e o esconde da ira dos maus no seu
impenetrável labirinto de bugigangas, tem também salvo o cronista do pecado da saudade
em tudo quanto é sítio. Ao jornalista, por outro lado, Oliveira de Figueira salva-o
todos os dias da rotina das notícias das agências internacionais. Há um choque
de comboios em Paris? Oliveira de Figueira está, pelo menos, entre os feridos. Um
atentado na África do Sul? Oliveira de Figueira ia a passar. Um assalto a um paquete
no Mar Egeu? Oliveira de Figueira ia no cruzeiro com a família e viu tudo e, com
um pouco de sorte, até tirou fotografias! Mesmo quando já partiu, e mesmo
que já tenha partido há muitos séculos, Oliveira de Figueira deixou um rasto de
simpatia e de História que protege o viajante que o segue como o escudo invisível
do dentífrico. Uma vez, em Nagasaki, entrei numa loja para comprar uma garrafa de
saké e um serviço de louça em que o ministrar
mais tarde, em casa, com a exigível propriedade, às visitas mais requintadas. O
lojista não tinha que ser especialmente perspicaz para descobrir que eu não era
japonês; só teve que ser um pouco curioso para me perguntar, num inglês ainda pior
do que o meu, donde era eu from. Quando
soube que eu era from Portugal, os
seus olhos e as suas palavras ficaram subitamente em festa: falou-me, então, da
chegada dos portugueses àquelas costas muitos séculos atrás, em estranhos
barcos à vela, da forma como por lá se foram ficando e de como venderam às gentes
da terra, o famoso bazar de Oliveira de Figueira!, coisas dispersas e ideias
tão singulares como fabricar pão, espingardas, vitrais coloridos ou fazer chá. E,
num arroubo de reconhecimento e cordialidade (nunca um português lhe tinha
entrado pela loja, e até a família fora chamar lá dentro para me ver!) ofereceu-me
tudo o que eu lhe queria comprar e embrulhou-mo num chamejante papel de seda amarelo.
Mas o episódio não acaba aqui. Quando, no hotel, contei o sucedido aos outros
portugueses que comigo viajavam, a expedita alma comerciante de Oliveira de
Figueira acordou alvoroçadamente neles, vinda do fundo dos tempos. Todos
queriam ir também à loja (eu é que lhes não disse onde era!) onde os portugueses
eram very welcome para terem saké e jarrinhas de porcelana de borla...
Infelizmente, a imprevisível Comissão dos Descobrimentos, que para aí gere milhões
com a falta de bom senso que se sabe, deve ser mais leitora de La Salade do que
de Hergé. Por isso Oliveira de Figueira não terá a homenagem que merece.
Nenhum banco se lembrará de cunhar em moeda os seus dalinianos bigodes, nenhum conferencista
lhe dedicará uma palestra, nenhum estudante pedirá uma bolsa à Gulbenkian para lhe
seguir o rasto através dos continentes, nenhuma Câmara lhe porá o nome numa rua,
nem a estátua numa praça. A homenagem da crónica, em letra impressa, não ressalvará
o resto; que, ao menos, sirva de efémera memória da sua passagem generosa e corajosa
pelos perplexos mundos da nossa infância e do nosso coração». In
Manuel António Pina, Jornal de Notícias, 23/07/1988.
In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia,
1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN
978-972-37-1684-9.
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