sábado, 7 de novembro de 2015

Saudade da Literatura. Crónica. Antologia. 1984-2012. Manuel António Pina. «O nome de Pessoa é uma inesgotável mina onde os políticos e os universitários vão buscar lustro para os cargos e para os currículos»

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Os salteadores da Arca Perdida
«Espécie em vias de extinção, os poetas, cuja duvidosa relação com os múltiplos poderes não excluiu, ao longo dos tempos, tempestades e conflitos, têm servido para cantar o poder e têm sido pagos para isso. E têm servido para dourar o poder, os poderes, como adereço requintado, sobretudo depois de mortos, porque se tornam então politicamente mais baratos e menos controversos. A estranha sedução e reverência que a poesia, a arte e, em geral, a chamada cultura despertam nos que mandam e nos que têm dinheiro (qualidades que, na maior parte dos casos, andam juntas…) contagia depois os que obedecem e não têm dinheiro, e por via dessa sedução e dessa reverência se alimentam também os valores da obediência e do reconhecimento sobre que os poderes se fundam. Quando um banco japonês compra os Girassóis deVan Gogh por milhões não é só um negócio que faz; é um negócio muito especial, com um verniz que entra nos balanços na coluna da imagem e do prestígio, cuja contribuição para as colunas mais estritamente contabilísticas passa por misteriosos mecanismos iconográficos. Os discursos, as inaugurações, as festividades, os programas de TV, suscitados por tudo quanto é sítio da política e da cultura pelo centenário do nascimento de Fernando Pessoa andam por caminhos parecidos. O nome de Pessoa é uma inesgotável mina onde os políticos e os universitários vão buscar lustro para os cargos e para os currículos. Quando vejo Abecasis na TV, e todos os Abecasis que vão à TV, encher a boca com o nome de Pessoa, e quando os locutores e jornalistas, no exercício do seu sacerdócio do poder e dos valores constituídos, repetem reverentemente os rituais das entrevistas com intelectuais universitários e com comemorativos em geral, das reportagens, das homenagens, ou debitam os lugares-comuns apropriados à centenária circunstância, dói-me num sítio que não me custa a crer seja o mesmo sítio onde doeu a Pessoa a poesia que escreveu.
Ao contrário dos poetas, a poesia, felizmente, não serve para nada. A não ser aos poetas (aos poetas que escrevem poesia e aos poetas que lêem poesia). Tenebrosa e absoluta, a poesia furta-se (os poetas nem sempre...) aos dedos grossos do poder, mesmo quando se verte em cantorias de louvor e de exaltação. Os poetas são mais sólidos e mais vulneráveis, têm emprego, nacionalidade, Bilhete de Identidade. A poesia não. Nem a pintura. Os livros, os quadros, aprisionam-se, utilizam-se, exibem-se, vendem-se; a poesia e a pintura são coisas gratuitas e desmesuradas, que nascem e vivem num território onde não chegam os exércitos nem as administrações. A poesia, e a arte, sempre foram uma igreja de catacumbas, cuja iniciação se faz no silêncio e na solidão, que são terras altas inacessíveis ao voo das aves que, como os corvos de Nietzsche, grasnam e andam em bandos. Dir-se-á que não há mal nenhum em que os emblemas e os fetiches da poesia e da pintura circulem na praça pública como mercadoria e que andem ao pescoço dos políticos. E que talvez seja inevitável, e dispiciendo, o comércio do poder político e do poder económico com a arte e com a poesia. Mas os sentimentos estão para além do bem e do mal e o preço que se paga vendo Pessoa em bronze sentado a uma mesa do Chiado, ou os Girassóis fechados num cofre de Tóquio, é um sentimento; um sentimento talvez demasiado, mas de qualquer maneira um sentimento. E não deixa de ser uma impressão estranha assistir ao espectáculo das multidões kultas à volta da fogueira pessoana, tentando papudamente, e em vão, agarrar o seu fogo e gritando Agarreio-o! Agarrei-o!; e dos actores declamando, diante de câmaras embasbacadas, Álvaroo de Campos com os gestos e os trejeitos com que declamam André Brun; e dos universitários debruçados, nas salas de anatomia crítica, sobre o corpo poético cógnito e incógnito de Pessoa, dissecando símbolos, pesando metáforas, separando heterónimos, publicando afanosamente relatórios, teses e artigos em tudo quanto é revista e editora, disputando a famosa arca para os currículos como os soldados romanos à volta da túnica de Cristo.
Releio isto e descubro alguma, provavelmente excessiva, sintomatologia de ressentimentos, amarguras, margens. A doença infantil da poesia não há-de deixar esquecer o que deve a alguns críticos muita da poesia de Pessoa tirada da arca, e a saída de muita dela do seu particular universo para o nosso universo colectivo; estou a lembrar-me de João Gaspar Simões, de Maria Aliete Galhoz, de Teresa Rita Lopes, de Eduardo Lourenço, de Agostinho da Silva, de Dalila Pereira da Rocha e de muitos outros (mesmo de alguns dos militantes da terrível tropa dos assistentes universitários que se lançaram ao assalto da arca perdida). Já aos políticos (se calhar com a excepção de António Ferro) ninguém, nem a poesia de Pessoa, deve nada. Eles é que têm uma dívida para com ela que, naturalmente, não conseguirão pagar com estátuas nem com nomes em ruas. Infelizmente, ao contrário do filme de Spielberg, este vai terminar mal e, ou muito me engano, ou, desta vez, Indiana Jones dificilmente levará a melhor sobre os salteadores da arca perdida de Pessoa». In Manuel António Pina, Jornal de Notícias, 18/06/1988.

In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia, 1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN 978-972-37-1684-9.

Cortesia de AssírioAlvim/JDACT