Alguns jornais velhos
«O que será feito do Ferraz?
E da Vitória? E do Artur? E do Paiva? E, dos outros? Há 20 anos eram crianças. E
poetas. (e eu, e nós, o que éramos há 20 anos?). Hoje háo-de estar por aí, em qualquer
lado, dispersos para sempre, provavelmente ao torno em alguma oficina, ou a fazer
contas e a preencher papéis em algum absurdo escritório, ou repetindo desencantados
gestos em linhas de montagem sem sentido. Há 20 anos, a Vitória queria ser uma flor:
Se eu fosse flor / devia ser linda, / cor-de-rosa.
/ E as senhoras cortavam-me / para pôr nas jarras. O que quererá ela hoje? O
Ferraz revoltava-se: Morrer enquanto estamos
vivos / não adianta nada, / havíamos de morrer só quando estivéssemos mortos, /
ou na barriga da mãe! Hoje ter-se-á resignado? E o Paiva surpreendia-se com
coisas simples e surpreendentes: o Natal, a gente nas ruas, a toalha sobre a mesa
da sala de jantar. Não é fácil ser criança. (Para dizer a verdade, ser adulto, o
que quer que isso signifique, também não é...). Há 20 anos, o Ferraz, a Vitória,
o Paiva e os outros eram crianças numa casa quase anónima da Senhora da Hora, o
Centro de Recuperação de Crianças, onde alguns adultos as ajudavam a ser crianças,
que é como quem diz que se ajudavam a si próprios a ser adultos. Pode muito bem
ter sucedido que o Centro os tenha recuperado
a todos e eles hoje estejam tão feios e tão recuperados,
como nós e que os seus sonhos recuperados,
sejam agora o Totoloto ou umas férias em Torremolinos.
Na altura, todos eles (e
se calhar todos nós) sonhavam sonhos mais graves e mais improváveis. O Artur, por
exemplo, sonhava ser uma casa: Se eu fosse
casa, as pessoas dormiam dentro de casa, / e também jantavam dentro de casa, / e
lavavam a cara no lavatório. Há 20 anos era a infância, esse misterioso
lugar, perdido nas sujas ruas da grande cidade, ou nas ruas, também sujas, da escola
e da família, que eles recuperavam na
casa da Senhora da Hora. Com a ajuda de um imenso pequeno jornal de quatro páginas,
o Fala
Barato, que se publicava ao sabor do Sol: na Primavera quando era Primavera,
no Verão quando era Verão, no Outono quando era Outono e no Inverno
quando era, e era tantas vezes!, Inverno. Num desses invernos vieram buscar a Vitória
e ela, subitamente aprisionada fora de si, escreveu uma prosa terrível no jornal:
Eu gosto muito do Natal. Eu era para passar
o Natal aqui no Centro, mas veio uma senhora buscar-me para ver a minha mãe que
estava morta. Agora, 20 anos depois, folheio os Fala Barato, que encontro
por acaso, velhos e despropositados, no fundo da estante, e procuro-os a todos,
ao Ferraz, à Vitória e ao Paiva, mas encontro apenas sombras. E palavras,
que é a matéria de que a memória, como a infância (e como os jornais), são feitos.
Onde quer que hoje eles estejam, o Ferraz e os outros, não são o Ferraz e os outros
que lá estão; o Ferraz, poeta maldito, a Vitória, fragilíssima, e o Paiva,
que algum estranho deus contemplara com o raro dom, proibido às pessoas comuns,
de ver as coisas pela primeira vez, ficaram para sempre no Fala Barato.
Tinham todos sido recolhidos no Centro, vindos sabe-se lá de
onde, para serem recuperados. Porque a
infância, como a poesia, sobretudo quando são mais puras, suportam mal a vida; eram
crianças com problemas, e a infância é um problema que a vida raramente perdoa.
Fora do Centro teriam certamente soçobrado no mundo dos adultos e das pessoas comuns.
Hoje, provavelmente, são também, como todos somos, pessoas comuns. O mais certo
é que já, não escrevam poesia e guardem os Fala Barato escondidos em qualquer sítio
inacessível no fundo de si próprios. Os meus Fala Barato guardei-os também,
de novo, no fundo inacessível da estante. E ali jazerão para sempre, mortos e irrecuperáveis». In Manuel António Pina, Jornal de
Notícias, 28/05/1988.
In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia,
1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN
978-972-37-1684-9.
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