Cherbourg, França. 10 de Abril de 1912
«(…) Referências? Posso pedir
que sejam enviadas pelo correio. Qualquer coisa que a senhora quiser. Lá no
meio do Atlântico? Sempre há um marconigrama. Tess havia lido sobre eles e
esperava que estivesse dizendo a coisa certa. Lucile de repente se cansou
daquele vaivém. Lamento, não sei nada a seu respeito, disse. Não será possível.
Ela se virou para conversar com Cosmo. Desesperada, Tess teve uma ideia. Olhe,
por favor, olhe, pediu, abrindo a gola do vestido. Eu fiz isso. Tentei copiar a
gola de um dos seus vestidos que vi no jornal. É uma cópia ruim, claro, mas... Nada
mau, murmurou Elinor, observando a gola. Estava primorosamente virada, um linho
firme desenhado para ser usado tanto aberto como fechado, requerendo pontos
cuidadosos. Um trabalho bastante complexo. Incomum para uma servente. Lucile
lançou um olhar interessado na direcção de Tess, depois inspecionou a gola com
os dedos. Era um de seus melhores projectos. A garota havia cortado a gola em
proporção perfeita com o seu vestido e costurado à mão. Não havia uma só ruga
no tecido. Você está dizendo que fez isso?, inquiriu ela. Sim, fiz. Quem a
ensinou a costurar? Minha mãe, que é muito habilidosa. Tess se empertigou com
orgulho. Sou conhecida no condado. E corto os meus próprios modelos. Todo mundo
corta, minha querida. Isso só requer tesoura. Está querendo dizer que desenha,
presumo eu. Lucile estendeu a mão sem cerimónia e ergueu a manga do vestido de
Tess, notando a habilidade do trabalho de montagem da garota. Sim. Desenho e
costuro. Faço tudo. O seu patrão lhe paga? Não pelos vestidos. Mas sou boa, e
mereço ser paga. Talvez isso fosse arrogante demais. Ela respirou fundo e
lançou todas as fichas. Quero trabalhar com a senhora. É a melhor estilista do
mundo, e não posso acreditar na sorte que tive de encontrá-la. Os seus vestidos
são uma inspiração... Quem é capaz de desenhar como a senhora? Por favor, me dê
uma oportunidade. A senhora não se vai arrepender.
Lucile encarou a menina, com
expressão indecifrável. Algo passou por seus olhos enquanto os espectadores ao
redor caíam em silêncio, esperando o que viria em seguida. Ela provavelmente é
independente demais para você, disse Elinor baixinho, de lado. Nunca se sabe.
Ela talvez não seja bem o que diz ser. A expressão de Lucile não mudou, embora
um pequenino sorriso tenha curvado os seus lábios. Talvez. Mas eu poderia
manter minhas joias trancadas no cofre do navio, não é? Ela se dirigiu a Tess. Sente-se
satisfeita em ser uma empregada? Não estou oferecendo nada mais do que isso. Farei
o que a senhora quiser. Só quero uma oportunidade de provar o meu valor e
trabalhar para a senhora. Sim, sim, ela faria qualquer coisa. Não sonharia
acordada nem faria montinhos com os cantos dos lençóis, trabalharia, aprenderia
e mudaria tudo. Tess estava respirando com dificuldade. Sentiu as dobradiças do
destino rangerem, uma porta se abrir..., ou será que se estava fechando? Que
ela goste de mim, rezou ela. Qualquer
coisa? Tess se empertigou. Qualquer coisa respeitável, nada mais, disse.
Lucile avaliou com o olhar a
silhueta da garota, observando o cabelo escuro emaranhado, as maçãs do rosto
altas e rosadas e o queixo altivo, as botas desgastadas com um cadarço partido.
Vamos embarcar em breve. Está preparada para partir daqui a uma hora, mais ou
menos?, inquiriu ela. Sim, posso partir imediatamente. Tess emprestou um tom
duro e rígido às suas palavras. Só uma oportunidade, pensou ela, não estrague
tudo. O grupinho ao redor de Lucile parecia estar contendo a respiração colectivamente.
Ela hesitou mais um segundo. Certo, está contratada, disse no final. Como empregada,
apenas. Elinor lançou-lhe um olhar surpreso. Isso não é um pouco impulsivo,
Lucy? A irmã não respondeu, simplesmente continuou olhando para Tess como se
focasse o vazio, à distância. Obrigada, a senhora não se vai arrepender, disse
Tess, trémula, tentando não esmorecer diante do olhar incessante de Lucile. Você
precisa se vestir adequadamente para o trabalho, quer seja uma pessoa instruída
ou não. Lucile estava pisando em terreno firme novamente. Deve-me chamar de madame. E precisa de uma touca. Ela fez
um sinal para Cosmo. Meu marido, Sir Cosmo, cuidará dos detalhes. Tess
sorriu gentilmente para o homem alto e magro de bigode grande e bem cuidado que
deu um passo à frente para falar com ela. Depois de lhe fazer algumas
perguntas, teve uma conversa sussurrada com um funcionário da White Star
Line. Era, claro, uma passagem para uma servente, portanto não era
necessário passaporte. Não haveria problemas? Eles terminaram a conversa com um
aperto de mão firme. Tess expirou o ar com tanta intensidade que sentiu
tontura. Sim, a porta estava-se abrindo.
Ela segurou no corrimão,
descendo atrás de lady Duff Gordon por degraus escorregadios até um escaler com aparência encardida e meio
frágil. Um oficial de uniforme da White Star dissera a todos os passageiros que
o navio era grande demais para o porto raso de Cherbourg, portanto todos tinham
de ir utilizando o escaler. Quão
grande seria o navio, para ter provocado o rompimento do cabo de ancoragem de
outra embarcação a caminho de Southampton? Tess procurou enxergar através da
neblina cinzenta e fina, ansiosa para vislumbrá-lo. A névoa levantou. E lá
estava ele, assomando tão altivo, tão orgulhoso e distinto, que parecia
governar os mares, e não o contrário. Quatro chaminés enormes se erguiam
graciosamente em direcção ao céu. Nove deques, e Tess sentiu o pescoço doer no
esforço de contá-los. Não era de admirar que se chamasse Titanic. As
pessoas que se amontoavam para prender o escaler
ao navio estavam fora de proporção em relação a ele, mais pareciam formigas atarefadas.
Um marinheiro estendeu a mão para
Tess, chamando-a para subir na prancha de embarque. Ela obedeceu,
concentrando-se agora em colocar um pé atrás do outro. Estava acontecendo, não
tinha mais volta. Adeus, Sussex; adeus, patroa de rosto enrugado e filho
tarado; adeus, todos. Até ao seu lar, à sua mãe, aos irmãos e irmãs, a quem
talvez ela jamais voltasse a ver novamente. O seu coração tremeu. E ela deu o
passo seguinte com firmeza. Estava no topo. Um casal à frente, um homem com um
queixo belamente esculpido e uma mulher com um casaco de pele branca, deu um
passo para dentro do navio e parou para um abraço. Que bonito, que espontâneo.
O homem, cujas mãos cheias de veias denunciavam que ele não era tão jovem
quanto tinha parecido à primeira vista, de repente rodopiou a mulher num
movimento preciso que terminou por fazê-la girar, rindo, para se aninhar nos
braços dele. Os dois saltitaram com leveza, afastando-se, diante de aplausos
aqui e ali. Seriam artistas?
Bem
à frente dela estava um homem com rosto belo e inquieto dominado por um queixo
forte e bem modelado e um nariz aquilino delgado. As suas mãos estavam
enfiadas nos bolsos de um casaco de cashmere marrom imaculado. Seus
olhos pareciam nublados. De tristeza? O cabelo estava ficando grisalho nas
têmporas; provavelmente tinha uns quarenta anos, adivinhou ela. Um homem de
negócios, que olhava constantemente o relógio de pulso. Parecia envolvido pela
névoa, e não reagiu ao pequeno show à sua frente, apenas parou um
instante para observar o casal alegre com o que ela supôs ser uma certa
melancolia».
In
Kate Alcott, A Costureira, Geração Editora, tradução de Ana Mesquita,
2012/2013, ISBN 978-858-130-131-0.
Cortesia de Geração E./JDACT