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Baudolino
encontra Nicetas Coniates
«O
que é isso?, perguntou Nicetas, girando entre as mãos o pergaminho e tentando a
leitura de algumas linhas. É o meu primeiro exercício de escrita, respondeu
Baudolino, e desde que o escrevi, acho que devia ter uns quatorze anos, e ainda
não passava de uma criatura do bosque, costumo trazê-lo comigo como um amuleto.
Acabei preenchendo depois muitos outros pergaminhos, às vezes todos os dias. Eu
tinha a certeza de existir, simplesmente porque podia contar de noite o que me
acontecia de manhã. Mais tarde, bastavam-me alguns registos mensais, poucas
linhas para me lembrar dos acontecimentos mais importantes. Dizia de mim para
mim, quando eu estiver com uma idade avançada, vale dizer, agora, hei de
escrever as Gesta Baudolini, tendo por base estas notas. Assim, no curso
de minhas viagens, eu trazia comigo a história da minha vida. Mas na fuga do
reino de Preste João... Preste João? Jamais ouvi esse nome. Eu te falarei dele,
e talvez demasiadamente. Mas como ia dizendo: ao fugir, perdi aqueles papéis.
Foi como se tivesse perdido a minha própria vida. Dirás o que puderes lembrar.
Trabalho com fragmentos de episódios, restos de acontecimentos, e tiro disso
tudo uma história, tecida num desenho providencial. Quando me salvaste, tu me
deste o pouco futuro que me resta e te recompensarei, devolvendo a ti o passado
que perdeste. Mas a minha história talvez não faça nenhum sentido...
Não
existem histórias sem sentido. Sou um daqueles homens que o sabem encontrar até
mesmo onde os outros não o vêem. Depois disso, a história se transforma no
livro dos vivos, como uma trombeta poderosa, que ressuscita do sepulcro aqueles
que há séculos não passavam de pó... Para isso, todavia, precisamos de tempo,
sendo realmente necessário considerar os acontecimentos, combiná-los,
descobrir-lhe os nexos, mesmo aqueles menos visíveis. Além do quê, não temos
outra coisa a fazer, os teus genoveses dizem que devemos esperar que se acalme
a raiva daqueles cães. Nicetas Coniates, antes orador da corte, juiz supremo do
Império, juiz do Véu, dos segredos, ou seja, como diriam os latinos, chanceler
do basileu de Bizâncio, além de historiador de muitos Comnenos e Ângelos,
olhava curioso para o homem que estava à sua frente. Baudolino dissera-lhe que se
haviam encontrado em Galípolis, nos tempos do imperador Frederico, mas quanto à
presença de Baudolino não tinha a certeza, no meio de tantos ministeriais, ao
passo que Nicetas, que tratava o basileu pelo nome, estava bem mais visível.
Estaria mentindo? Em todo o caso, foi ele quem o salvou da fúria dos invasores,
quem o conduziu para um lugar seguro, quem o reuniu com a família e quem
prometia levá-lo para fora de Constantinopla...
Nicetas
esquadrinhava o seu salvador. Mais do que um cristão, parecia um sarraceno.
Rosto queimado pelo sol, pálida cicatriz que lhe cortava a face, coroa de
cabelos, ainda ruivos, que lhe conferiam uma aparência leonina. Nicetas
acabaria por surpreender-se mais tarde ao saber que aquele homem tinha mais de
sessenta anos. As mãos eram grossas e, ao cruzá-las sobre o ventre,
notavam-se-lhe as juntas nodosas. Mãos de camponês, feitas mais para a enxada
do que para a espada. E no entanto, falava grego fluentemente, sem deitar
saliva a cada palavra, como faziam quase sempre os estrangeiros, e Nicetas o
ouvira comunicar-se com alguns invasores numa língua áspera, que ele falava de
modo seco e veloz, como quem sabe usá-la também para grosserias. Por outro
lado, disse-lhe na noite anterior que possuía um dom: bastava que ouvisse duas
pessoas falando uma língua qualquer e pouco depois era capaz de falar como
elas. Dádiva singular, que Nicetas julgava ter sido concedida apenas aos
apóstolos. Viver na corte, e naquela corte, havia ensinado Nicetas a valorizar
as pessoas com serena desconfiança. O que mais impressionava em Baudolino, não
importa o que dissesse, era o facto de ele olhar com o canto do olho o seu
interlocutor, como para adverti-lo que não o levasse muito a sério. Hábito que
se poderia tolerar em qualquer um, excepto numa pessoa de quem se espera um
testemunho voraz, que devia ser interpretado como História. Mas, por outro
lado, Nicetas era curioso por natureza. Gostava de ouvir o que os outros
contavam, e não somente a respeito de coisas que não conhecia. Se outros
contavam coisas que ele vira com os próprios olhos, era como se as observasse
sob outro ponto de vista, como se estivesse no alto de uma daquelas montanhas
dos ícones, e visse as pedras tal como foram vistas pelos apóstolos na
montanha, e não como os fiéis aqui em baixo. Além disso, gostava de interrogar
os latinos, tão diferentes dos gregos, a começar por aquelas línguas
novíssimas, diversas umas das outras». In Umberto Eco, Baudolino, 2001, tradução de
Marco Lucchesi, Editora Record, Brasil, 2010, ISBN 978-857-799-002-3.
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