Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) O padre Ernesto Aragones sabia
que chegara a sua hora. Seria uma questão de minutos. Mais cedo ou mais tarde
ele acabaria por encontrá-lo ali dentro. A luz proporcionada pela chama das
velas emprestava um ar amarelo-escuro ao local. As sombras pululavam nas
paredes e no chão como fantasmas inebriados de outros tempos. Mas o padre não
estava ali para se deixar amedrontar ou encantar pelos feitiços do local. Não
encontrara o guarda-chaves em lado algum. Era a sua esperança. Aliás, não
encontrara ninguém com boas intenções. O que acabava por ser natural àquela
hora da noite. Há muito que os turistas tinham saído para se encantarem com
outras visões, mais do corpo que da alma. O suor espalhava-se pelo rosto. Quem
é que queria enganar? Estava nervoso, muito, mas o momento pedia lucidez. Sentia-se
como um cruzado, em terra de infiéis, a quem era pedido um último acto heróico.
Avistara-o na abside, junto às grades da capela de Adão, encostada à Gólgota, e
fugiu o mais depressa que pode. Os seus 80 anos já não permitiam certas
veleidades. Abafou os passos descalçando-se. Encostou os sapatos, muito
direitos, num dos topos da Pedra da Unção, onde, supostamente, se cobrira o
corpo de Cristo, não nesta, que datava de 1810,
mas neste local, ou assim se julgava pelos contos e ditos da história.
Arquejava mas obrigou-se a
prosseguir até à rotunda e a entrar no túmulo. Não havia lugar mais sagrado
para os cristãos, ainda que a maioria o desconhecesse por completo. Para
Ernesto era um imenso privilégio, apesar do receio. Entregar-se a Deus no local
onde o corpo de Jesus Cristo foi depositado antes de ressuscitar ao terceiro
dia. Que irónico. Mas tinha medo como sabia que teria. Poucos passariam por
este momento incólumes e de peito feito. Escutou passos na rotunda, lá fora.
Era ele. Um par de passos pesado e firme. Buscou a memória fotográfica para
relembrar a imagem dele junto às grades da capela de Adão. Era alto. Trajava
fato, sem gravata, fino, camisa azul. Pormenores pouco importantes mas que o
seu cérebro guardou. Não conseguia descortinar a cor do fato com precisão pois
o local já era pobremente iluminado de dia quanto mais a coberto da noite.
Meu Pai protege este teu servo,
suplicou Ernesto ajoelhando-se sobre a laje de mármore. Fez o sinal da cruz,
sem pressas, fechou os olhos e orou. Não havia mais nada a fazer. As sombras
acompanhavam o frémito dançando nas paredes num ritmo cada vez mais frenético,
tal como o do seu coração. A certa altura agigantaram-se e, apesar dos olhos
fechados e de aparentar um poço de calma, a pulsação de Ernesto acelerou dentro
do peito para aquele que seria o seu último palpitar de vida. Sabia-o. Permaneceu
ajoelhado sobre a laje de mármore que protegia a rocha que sustentou o peso de
Cristo. Mas Ernesto não pensava nisso. Apenas que necessitava de alguma paz
interior para completar os derradeiros instantes. Sentiu o bafo da respiração
dele a invadir-lhe o pescoço. Boa noite, senhor padre. A voz do agressor
sibilava em surdina, bem junto à orelha esquerda de Ernesto, como se não
quisesse perturbar as almas que deambulavam pelo lugar sagrado. Uma frialdade
desumana, quase sem vida. Não obteve resposta, obviamente. Vou-lhe fazer uma
pergunta, explicou o intruso. Pode escolher responder... Ou não.
Deu alguns instantes para a
instrução ser assimilada por Ernesto. Onde é que ele está? Não era, de todo, a
pergunta de que estava à espera. O terror invadiu-lhe as veias. Ele sabe,
pensou sem pronunciar palavra. Oh, meu Deus. Ele sabe. Como é possível? Quem
é você?, perguntou, tentando ganhar tempo. O suor traía-o gotejando pela testa,
deixando-a completamente molhada. A pancada atingiu-o na parte de trás do
pescoço, empurrando-o alguns centímetros para a frente. Segurou-se na laje de
granito a alguns centímetros do chão. Responder a uma pergunta com outra pergunta.
Onde estão os seus modos, senhor padre? A voz do homem alteou para um zumbido. Ele
quem? Estão à procura de quem? Nova pancada. Outra vez? O vosso repertório é
muito limitado. Vosso? Ele sabia da existência deles? Ernesto abriu os
olhos nesse momento. Fizera tudo para o proteger mas falhara... Completamente. Sentiu
um objecto frio encostar-se à parte de trás do pescoço. Sem vida, sem vontade,
o servo mais fiel. Tem dez segundos, deliberou. Use-os bem, senhor padre. Quem
seria ele? Nove. Como podia estar tão bem informado? Oito. Alguém
os traíra? Sete. O statu quo fora quebrado. Seria cada um por si
a partir daquele momento.
Seis. Protege a
nossa amada Igreja Católica Romana que tudo faz em Tua honra e glória. Cinco.
Entrego-me a Ti, meu Pai. Quatro. Teu servo em todas as horas.
Três. Uma lágrima desceu pelo rosto. Dois. Morro em paz. Um.
Debruçou-se com ambas as mãos suadas sobre a sacra laje e gritou: Perdoa-lhe,
Senhor. Ele não sabe o que... O metal que lhe perfurou a nuca roubou-lhe o
resto das palavras. Viu sombras a dançar nas paredes ao som de tambores tribais
antes de tombar pesadamente sobre a laje de mármore. Afinal, dançavam mesmo.
Depois não viu nem ouviu mais nada». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada,
Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
Cortesia
de PEditora/JDACT