segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Um País Encantado. Luís Miguel Rocha. «… dos pernetas e dos manetas, afogados e desafogados e gentes normais, moralistas e imorais, gente com alguns estudos, licenciados, burros, pobres de espírito ou de alforge e geniais, advogados, pu…, doutores…»

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O importante não é aquilo que fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. In Jean.Paul Sartre

«(…) Não é macho, atira o coronel em voz ríspida para dona Margarida. Bem vejo que vista ainda não lhe falta, recebe e atira na mesma moeda dona Margarida, o que interessa é que está mais completa com aquela coisinha pequena dentro da alcofa que lhe faz não ter medo de nada, nem mesmo do coronel, uma variação interessante Porque das outras vezes já era de se ter molhado pelas pernas abaixo. É um facto, voltamos a não conseguir ou voltei, devo dizer. Está bem dito. Que nome lhe vamos dar? Por esta não contava dona Margarida que agora não sabe o que há-de dizer. Está a falar a sério o coronel? O erro é nosso e não só dela? Estará bem o homem? Tem alguma sugestão o meu marido? Por acaso, se me permite gostaria que se chamasse Mariana. Mariana Silveira. Isto se não tiver ainda nenhum nome para lhe dar, bem entendido. Quem é este homem aqui dentro do meu quarto, Pensa dona Margarida, meu marido não é de certeza, será que aquele ser dentro da alcofa, minha filha, nossa filha, operou tal mudança neste homem, poderá ser isso? Mariana Silveira será senhor meu marido.
Muito bem, falarei com o padre para marcar o baptizado. Descanse por agora, amanhã falaremos. E sai o coronel fechando a porta sem bater, não sem antes se inclinar e beijar a filha Mariana, a mulher desta história, e deitar um olhar piedoso a sua esposa Margarida. Fica esta a matutar e não encontra outra razão que não a filha recém-nascida, só ela poderá ter feito o que fez, transformar um homem mau em bom, um coronel sem coração em homem de sentimentos, o que se passou não importa e lembra-se já dona Margarida da promessa que fez à virgem de lá ir pôr uma vela se atendesse o seu pedido, a Fátima irá, pois se não atendeu da forma desejada, atendeu de outra ainda mais miraculosa, há quinze anos que assim é, quase dezasseis, que atende os pedidos dos crentes e aflitos, dos desprotegidos e dos doentes, dos pernetas e dos manetas, afogados e desafogados e gentes normais, moralistas e imorais, gente com alguns estudos, licenciados, burros, pobres de espírito ou de alforge e geniais, advogados, putas e doutores, nacionais e internacionais de Coimbra Universidade e outras que tais, até Oxford e por aí fora, até à Rua Escura no Porto, a todas as ruas mais escuras e mais claras do país e do mundo, se bem que o que mais nos toca é o que mais perto está, ou de quem simplesmente acredita, e se dona Margarida acredita e prometeu, pois que cumpra o que lhe é devido e que vá acender uma vela à Cova da Iria, onde os pastorinhos viram a Senhora do Rosário e onde por estes tempos estão a construir uma basílica em sua honra há já quase cinco anos, ajude dona Margarida no que lhe for possível e deposite alguns escudos para ajudar à obra que deles precisa, a treze de Maio lá estará onde estarão outros, uns com mais ou menos devoção, mas todos crentes e pedintes nessas horas, pedintes de melhores dias, de melhor saúde, de melhor dinheiro, de melhor vida, para nós e para os nossos e para os outros que peçam os seus, e não esqueçamos da paz no mundo e que não haja guerra que neste Ano do Senhor de mil novecentos e trinta e três, nesta noite agoirenta em que nasceu Mariana Silveira, o mundo anda sem rumo, a ver no que isto vai dar, que não desatemos todos aos tiros e que nos salve o Presidente do Conselho, que decerto o fará, honra lhe seja feita, e já agora os que de nós crentes forem que rezem à Santa para que tudo acalme para os lados de Espanha e que o Mein Furher, ou o Presidente do Conselho na língua alemã, deixe de lado as ideias doidas que lhe despontam do cérebro e nos toldam a alma. Mariana Silveira nasceu, é o que nos importa, veio ao mundo sem problemas, pesa três quilos e trezentos gramas, a altura não interessa para o caso, pelo menos nesta idade, noutras se verá, dorme um sono profundo na sua alcofa e há paz na casa e nas pessoas que nela habitam. Lá fora, o céu ainda de breu pintado, já vai avançada a hora, de manhã se verá melhor a terra, o que a chuva limpou e o que enlameou, mais a segunda do que a primeira, e neste dia de Março do ano que já sabemos parou de cair água do céu». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.

Cortesia de PlanetaE/JDACT