O importante não é aquilo que
fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. In
Jean.Paul Sartre
«(…) Não é macho, atira o coronel em voz ríspida para dona Margarida. Bem
vejo que vista ainda não lhe falta, recebe e atira na mesma moeda dona
Margarida, o que interessa é que está mais completa com aquela coisinha pequena
dentro da alcofa que lhe faz não ter medo de nada, nem mesmo do coronel, uma variação
interessante Porque das outras vezes já era de se ter molhado pelas pernas
abaixo. É um facto, voltamos a não conseguir ou voltei, devo dizer. Está bem
dito. Que nome lhe vamos dar? Por esta não contava dona Margarida que agora não
sabe o que há-de dizer. Está a falar a sério o coronel? O erro é nosso e não só
dela? Estará bem o homem? Tem alguma sugestão o meu marido? Por acaso, se me
permite gostaria que se chamasse Mariana. Mariana Silveira. Isto se não tiver
ainda nenhum nome para lhe dar, bem entendido. Quem é este homem aqui dentro do
meu quarto, Pensa dona Margarida, meu marido não é de certeza, será que aquele ser
dentro da alcofa, minha filha, nossa filha, operou tal mudança neste homem,
poderá ser isso? Mariana Silveira será senhor meu marido.
Muito bem, falarei com o padre para marcar o baptizado. Descanse por
agora, amanhã falaremos. E sai o coronel fechando a porta sem bater, não sem
antes se inclinar e beijar a filha Mariana, a mulher desta história, e deitar
um olhar piedoso a sua esposa Margarida. Fica esta a matutar e não encontra
outra razão que não a filha recém-nascida, só ela poderá ter feito o que fez,
transformar um homem mau em bom, um coronel sem coração em homem de
sentimentos, o que se passou não importa e lembra-se já dona Margarida da
promessa que fez à virgem de lá ir pôr uma vela se atendesse o seu pedido, a
Fátima irá, pois se não atendeu da forma desejada, atendeu de outra ainda mais
miraculosa, há quinze anos que assim é, quase dezasseis, que atende os pedidos
dos crentes e aflitos, dos desprotegidos e dos doentes, dos pernetas e dos
manetas, afogados e desafogados e gentes normais, moralistas e imorais, gente com
alguns estudos, licenciados, burros, pobres de espírito ou de alforge e
geniais, advogados, putas e doutores, nacionais e internacionais de Coimbra
Universidade e outras que tais, até Oxford e por aí fora, até à Rua Escura no
Porto, a todas as ruas mais escuras e mais claras do país e do mundo, se bem
que o que mais nos toca é o que mais perto está, ou de quem simplesmente
acredita, e se dona Margarida acredita e prometeu, pois que cumpra o que lhe é
devido e que vá acender uma vela à Cova da Iria, onde os pastorinhos viram a
Senhora do Rosário e onde por estes tempos estão a construir uma basílica em
sua honra há já quase cinco anos, ajude dona Margarida no que lhe for possível
e deposite alguns escudos para ajudar à obra que deles precisa, a treze de Maio
lá estará onde estarão outros, uns com mais ou menos devoção, mas todos crentes
e pedintes nessas horas, pedintes de melhores dias, de melhor saúde, de melhor
dinheiro, de melhor vida, para nós e para os nossos e para os outros que peçam
os seus, e não esqueçamos da paz no mundo e que não haja guerra que neste Ano
do Senhor de mil novecentos e trinta e três, nesta noite agoirenta em que
nasceu Mariana Silveira, o mundo anda sem rumo, a ver no que isto vai dar, que
não desatemos todos aos tiros e que nos salve o Presidente do Conselho, que
decerto o fará, honra lhe seja feita, e já agora os que de nós crentes forem
que rezem à Santa para que tudo acalme para os lados de Espanha e que o Mein
Furher, ou o Presidente do Conselho na língua alemã, deixe de lado as ideias
doidas que lhe despontam do cérebro e nos toldam a alma. Mariana Silveira
nasceu, é o que nos importa, veio ao mundo sem problemas, pesa três quilos e
trezentos gramas, a altura não interessa para o caso, pelo menos nesta idade,
noutras se verá, dorme um sono profundo na sua alcofa e há paz na casa e nas
pessoas que nela habitam. Lá fora, o céu ainda de breu pintado, já vai avançada
a hora, de manhã se verá melhor a terra, o que a chuva limpou e o que enlameou,
mais a segunda do que a primeira, e neste dia de Março do ano que já sabemos
parou de cair água do céu». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado,
Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.
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