O importante não é aquilo que
fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. In
Jean.Paul Sartre
«(…) Este que aqui jaz neste familiar jazigo para seis tem muitos anos
dentro dele, muitos mais há-de ter do que os que viveu, mas a isso todos lá
chegaremos, uns mais cedo e outros mais tarde. Outros estão com ele, por cima e
por baixo e já um no lado oposto, família unida, também na morte, ou só na
morte, a fazer companhia uns a outros, se não no além pelo menos ali e se não
na vida de vivos na vida mortos, estarão juntos até ao fim do mundo ou até
alguém se lembrar de dali os mudar por razões que ainda se hão-de dar ou ter
porque também nos mortos se mexe. Este que aqui jaz, no meio de dois, é que nos
interessa, este que em vida fez o que quis e mais o que lhe mandaram ou não
fosse para isso que cá estamos todos, uns mais, outros menos, mas cada um com o
quinhão que lhe cabe. Teve cinco filhos, já não há espaço para todos neste
familiar jazigo, só para dois, se o quiserem, mas a este já pouco importa, os
vivos que se acautelem como ele o fez, tratar da morte é enquanto se está vivo,
aos machos, três, deu estudos, como era sua obrigação, na escola militar e, às
mulheres bons casamentos, um melhor do que outro, mas os dois inteligentes no
investimento porque o coração não é tido para nada nestas horas e o que importa
é o que o noivo tem para dar em bens, géneros, propriedades, dinheiros, e quiçá
amor, se a isso estiver disposto. Já proporciona tantas comodidades à sua
senhora que por vezes o melhor que pode oferecer nessa matéria é a sua
genitália com muito amor. Casou por uma vez apenas, nas mesmas circunstâncias
que suas filhas casaram, bom dote oferecido ao sogro, ainda andava pela Real Academia
dos militares, quando a menina ainda era de tenra idade para pensar nessas
coisas, e casaram aos dezoito dele e não interessa quantos dela, para não
sermos malquistos pelos quantos de nós forem mulheres e porque, e de mais importância,
ela jamais nos perdoaria a infâmia de andarmos por aí a dizer a idade de uma
senhora, que ainda o é, essa ainda ninguém colocou naquele familiar jazigo porque
isso é coisa de mortos, e muito menos que andemos por aí a anunciar com que idade
casou, isso é coisa dela, os nossos respeitos minha Senhora, mas adiante, não é
essa extremosa senhora que nos importa agora, embora, e sem embarcar em
ousadias, lhe dediquemos umas linhas como é nossa obrigação e como tem feito
por merecer na sua longa travessia pela vida terrena. Seu marido, este que aqui
jaz e nos importa agora, abraçou a carreira de militar de carreira e seguiu
para Moçambique, por ordens de el-rei Carlos I, para acalmar os que de lá eram,
mas não tinham esse direito ao que parece, muita coronhada deu neles, nos da
outra cor e outras tantas nelas, se bem que de outro tipo de coronhada, se as
embuchou ou não nem nós sabemos, nem ele, porque isso é assunto de pouco
interesse, foi pai de cinco, é isso que está escrito nos registos, para todos
os que dessas matérias se interessem, e para o glorioso reinado de Portugal não
foi pai de mais ninguém. Cinco filhos, cinco, é quantos teve ou mandou ter, e
se teve mais nem a ele importou, cumpriu a sua missão nas colónias com primor,
como se lhe exigia, pôs os pretos na linha, recebeu as medalhas que lhe
couberam em direito pelo acto heróico demonstrado em nome do império, orgulho
de todos nós, e voltou no final de dois anos, os ditos de comissão, à terra
mãe, ao continente, continuando a somar medalhas e patentes, um bom português,
como todos nós, que encaminhou os filhos, os machos, também para uma boa
educação, como o seu pai o encaminhou, e por aí, sucessivamente, até ao homem
das cavernas que encaminhou os filhos para uma boa educação na arte de matar
mamutes. Está aqui porque morreu, bem certo, de desgosto, entristecera-lhe o
coração de tal forma que deixou de bater, ainda novo, aos quarenta anos, assim
conta a história ou não fosse tudo uma estatística, horas, dias, semanas, meses
e anos, quarenta, neste caso, aos três de Abril de mil novecentos e onze a
norte da capital, trezentos quilómetros a norte da capital, nos arredores do Porto,
também capital, mas do norte, e segunda cidade do país porque as tem de haver
segundas ou segundos em todo o lado e em todas as coisas, foi em Vila do Conde,
mas não do Conde em que todos pensámos, é outro este Conde que dá nome à vila
que muito mal servida ficaria se se chamasse Vila do Conde Cosme, foi onde o
coração parou e não teve ânimo para continuar, apertado pelas lágrimas que não
verteu, porque um homem não chora nunca, muito menos um militar de carreira,
mas todos choramos por dentro, militares ou não, na esperança que o sangue
chore por nós, mas o que dá vida nas artérias e nas veias não verte lágrimas
por ninguém, não é para ser chorado, foi o desgosto que o parou, desde Outubro
que ninguém o via sair de casa, em Vila do Conde, este que assistiu à morte de
dois reis em toda a sua vida, um dos quais foi assassinado, e à coroação de
mais dois, o que acabou por ser assassinado e por quem lutou em Moçambique e o
último rei de Portugal, Manuel II, que os houve quarenta e um em todo o reinado
de reis e regentes, desde o Condado ao Império, e mais três espanhóis durante
cinquenta e nove anos que devem ser historiados separadamente, porque em toda a
história, desde Afonso I, o Conquistador e fundador da nossa Pátria, que Deus o
tenha em nobre descanso, até aos dias de agora, sempre se soube destes
episódios em que os espanhóis entravam por aqui adentro para ficar com o que nosso
era e de todas as vezes acabaram por chispar rumo à sua terra de uma maneira ou
de outra, com ou sem ajuda de uma parte e de outra e sendo nós menos do que
eles mas mais assanhados». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado,
Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.
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