A Mãe
«(…) Perscrutar-lhe o olhar,
quedar-me paralisada ante um rosto indecifrável, ir-lhe sorrateiramente na
peugada, e continuar mais uma vez a observá-la, atónita, perplexa e atrapalhada,
perguntando-me como seria possível desvenda-la, descobrir-lhe a alma,
segurá-la, pô-la diante de mim, de pé, inteira, e próxima, e afável. Mas quedar-me
ali em meio ao nada, completamente só e porém na mesma sala, as palavras iam e
vinham entre nós como se mandássemos mensagens, eu perguntava-lhe o significado
das palavras, ela respondia-me distraidamente mas concentrada, como se uma parte
dela me ouvisse e respondesse, e a outra se ausentasse para muito longe, para
um mundo só dela e a que ninguém tinha acesso, um mundo que ela não partilhava
nunca, um mundo em que se isolara de modo melancólico e inevitável, como algo a
que não se pode fugir, mesmo que se queira. Ela pousava o olhar em mim e não me
via, e também a ela eu não alcançava e, quando o nosso olhar assim se cruzava, eu
sentia que não existíamos, nem eu, nem ela. Nem eu que por todo o lado a
seguia, como que hipnotizada, nem ela que assim se escapava e desaparecia ante
meus olhos atónitos e o aperto que me estrangulava, vindo do chão e subindo-me
até à cara.
Sentir-lhe ao menos o roçagar suave
do vestido, tocar ao de leve nos anéis que ela usava, esperar o milagre de uma mudança,
uma alteração súbita, sentir o corpo dela num abraço longo, eu que nunca a
abraçara nem por ela fora abraçada, senti-la tremer de frio, de fome, ou raiva,
mas que algo nela mexesse, e viesse ao de cima, e se revelasse. Seguia-a de
sala em sala, habituei-me a andar como um fantasma pela casa, cobria de véus e
de esperança os móveis, os tapetes, as atmosferas das salas, pedia-lhe em
silêncio uma migalha, e via-a aparentemente fria, quase dura, muitas vezes triste
e, sei-o agora, sempre impenetrável. Então ia para o meu quarto e ali ficava,
deitada no chão, entre a cama e a janela, aconchegando-me febrilmente numa manta
de viagem.
Fora de mim podia ser Verão e o sol
entrar a rodos, ou fim de tarde e estar quase escuro, ou sentir a chuva batendo
com força e ritmada, que não mudava nada. Ficava horas a fio ali deitada,
imaginando cenas imprecisas e lindas, duendes brotando de florestas raras,
meninos órfãos adoptados por uma mãe melosa e doce, como só existem nos contos
de fadas, uma trotineta sulcando o espaço em piruetas tão engraçadas, e
cavaleiros de armadura branca defendendo crianças desvalidas, donzelas
inocentes, e damas alquebradas. Quisera vesti-la de tules e rendas, cobri-la de
brocado, ataviá-la. Deslumbrava-me sempre a vista do roupeiro dela, imaginá-la
naqueles vestidos de festa que ela já não usava, nos casacos sumptuosos de que
se envergonhava. E perguntava-me como teria sido outrora, que vida levara, que
luxuosos salões não frequentara, segredos que só aqueles vestidos traíam, de
que algo de bom um dia lhe tinha acontecido, e valera a pena, e a encantara.
Ou será que nem nessa altura,
quando envergava aqueles vestidos lindos e os passeava, nem nessa altura o seu
rosto se iluminara e a muralha em que se escudava se desvanecera? E havia as
sirenes brancas abafando tudo. Um quarto no escuro, a azáfama da casa exterior
a mim dando um toque de realidade àquela atmosfera pesada que eu criara, e que
assim me envolvia. E, depois, uns passos no corredor, como se alguém estivesse
próximo e se acercasse, dando-se conta. Mas as vozes diluíam-se, afastavam-se,
desapareciam, e eu permanecia deitada no chão, entre a cama e a janela, amarfanhando
a velha manta de viagem que me cobria, adornando de sons e vozes o quarto em
que me escondia. Ouvia campainha, o toque dos sinos da igreja antiga, imaginava-me
no pinhal rolando de bicicleta, por carreiros mal trilhados e íngremes, sonhava
com o ar quente acariciando-me por inteiro, revivia-me deitada sobre a terra
ligeiramente húmida, passando em revista as coisas em que errara, e as que
nunca fizera, e assim me consumia. A certa altura a voz de minha mãe
distinguia-se, entrava no quarto ao lado falando com a criada, falava de
toalhas lavadas e das frutas que faltavam». In Rita Cerdeiros, As Hortênsias
Brancas e as Bicicletas, Fenda Edições, Lisboa, 1997, ISBN 972-918-449-6.
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