«Procurei os
sentidos
da água corrente,
da pedra submersa, do arder
da lenha, do som
de passos na areia.
A todas estas
riquezas fugidias
chamei alma».
In Inês Lourenço, in ‘Coisas
que Nunca’
«Inesgotável! Inesgotável na voz
impressa, no tempo, no corpo, na alma, na morte,
na mulher, na lâmina implacável do tempo. Inesgotável nas coisas
que nunca deveriam perecer, assim se define a poesia de Inês Lourenço. Com
efeito, toda a sua progressão textual faz-se no sentido de uma mais alta
definição da voz poética, passando por experiências de dicção em que se podem
distinguir essencialmente três momentos cruciais: uma primeira fase, marcadamente engagée,
feminista e contestatária, a que correspondem Cicatriz 100% e Retinografias;
uma segunda fase, da qual fazem parte Os Solistas, onde se assume uma
atitude mais distante, descomprometida e mais irónica, sarcástica, em que se esboçam
os vectores axiais da sua poética; e um terceiro momento, que se inicia com Teoria
da Imunidade e se estende por Um Quarto com Cidades ao Fundo, A
Enganosa Respiração da Manhã, Logros Consentidos, Disfunção
Lírica e pelo seu último livro Coisas que Nunca, no qual Inês
Lourenço opta, manifestamente, por uma poesia mais próxima da realidade,
comprometida com o quotidiano, o minimalismo, sempre com a acidez cortante de
uma ironia iconoclasta. Destes
três momentos ressalta, segundo Isabel Allegro Magalhães, um universo de
sensações que são o lugar de arrebatamento, com o desejo e a imaginação a
convocá-las, uma epistemologia dos sentidos, que constrói o erotismo e a sensualidade
na relação com os seres, os acontecimentos, a corporeidade da existência. No
seio dessa fixação com o comum da vida, onde são fotografados pequenos nadas,
constantes do presente ou da decantação da memória, o ritmo involuntário
da vida invade-nos docemente a alma. Desse ritmo intensamente
irregulado/ofegante ou sísmico esboça-se Coisas que Nunca, livro
feito de sucessivas reinvenções, de múltiplos sentidos ou sem-sentidos, onde a
voz da poetisa pulsa como lâmina implacável do tempo, despedaçando os
músculos dos sentidos:
Reescrita
Fender os versos
com a lâmina
implacável do
tempo. No umbigo
do poema cravar
o sabre rente às
vísceras dos verbos,
à linfa de
adjectivos. Despedaçar
os músculos dos
sentidos. Abrir
a rede viária do
sangue. Romper
a velha epiderme.
Coisas que Nunca é, pois, o reflexo
de uma voz que num percurso de vinte anos se foi delineando, num progressivo e
contínuo amadurecimento, assente simultaneamente numa poética de sabedoria e da
emoção concebida razão. Desde sempre, e segundo Valter Hugo Mãe, que a escrita
desta autora se faz desse estar acima parecendo levar o chão nos pés, ou vir ao
chão suportando o céu nas mãos. É do encontro com a memória, a infância, o
corpo, a cidade, o espaço, com a transfiguração do quotidiano e a circunstância
que a sua poesia espelha uma (in)temporalidade renovada e inovadora:
As raparigas da
Foz há muito deixaram
de enlaçar os
bilros sobre as almofadas.
Já não imitam nos
meandros da renda o desenho
das ondas. Nem
esperam, rodeadas de filhos pequenos
o regresso do seu
modesto ulisses. Hoje
trabalham na
pizzaria ou servem pregos e finos
na esplanada. Com
um pouco de sorte fazem
um Curso de Gestão
ou de outras ciências
ocultas para
gáudio da família que as vai
ver desfilar no
Cortejo da Queima e noutras
praxes saloias que
a turba não dispensa.
Também há as
outras, que ao certo não
sei o que fazem,
mas que ainda debutam
aos dezoito anos
ao som de O Danúbio Azul,
com reportagem na
imprensa rosa.
Mas o certo é que
o mar da Foz não desbotou
jamais a sua cor
atlântica, nem desistiu
desde há milénios
de receber o Douro,
embora os
caranguejos, as lapas
e os beijinhos nos
tenham abandonado
como as histórias
de antigos piratas e Robinsons
deixaram os nossos
sonhos.
O mar da Foz
envolve na salina rebentação
aquele poderoso
rio, que apesar de retido
em comportas de
barragem, incorpora
desde a nascente o
corpo feminino
das ribeiras que
para ele correm ainda
como rendilheiras,
no regresso dos barcos.
Mais do que uma recolha de
contida e rigorosa escrita, esta obra, marcada por uma alternância entre
poemas curtos e longos, reflecte toda uma lógica assente numa sequencialidade orgânica
e vincadamente serial, isto é, compõe-se de poemas claramente entrelaçados, numa
límpida construção que prende e envolve de forma poderosa o leitor. Inês Lourenço
é, desde logo, criadora de ponderado verso, como verso calibrado por
metrónomo, cortado por mão segura. Como uma faca. Sem paradas inúteis». In
Cidália Dinis, Inês Lourenço, Recensões, CEM, nº 3, Cultura, Espaço e Memória, Inês
Lourenço, Coisas que Nunca, Lisboa, &ETC, 2010, ISBN 978-989-815-025-7.
Cortesia de CEM/JDACT