«(…) Como uma faca. Sem paradas
inúteis. Vertiginosamente, em que tudo é dito de forma lapidar e cristalina:
Crónicas
Mulheres de
canastra à cabeça, que num
recôncavo
de esquina, não
calcetada, onde uma nesga
de terra desmentia
o urbanismo
invasor, mijavam
de pé
com rara pontaria
dissimulando
entre as grossas
saias, as
pernas afastadas.
Não usavam cuecas
tal como uma
modelo da Vogue,
cujo profundo
decote dorsal,
prolongado abaixo da
cintura,
as abolia.
Coincidências
da baixa plebe
e da alta-costura.
Oscilando entre uma escrita marcada
por um universo feminino, sem ser feminista, e uma apurada sensibilidade do
mundo, os seus textos são o reflexo de uma voz que espicaça a moralidade
caquética da sociedade pequena, do quotidiano repetitivo, de um tempo marcado pela
disforia. É nesta capacidade de conferir ao discurso um outro olhar sobre as
coisas, sobre as circunstâncias do mundo, que a sua poesia se de originalidade,
inventando e reinventando-se:
Poema
do dia seguinte
Talvez ignores
ainda
que não confio no
poder dos versos,
que assim como os
deuses
são um mero álibi
de sentidos
duvidosos.
Mas, sem poder
nenhum
os prefiro, livres
na sua inteira
inutilidade.
Restam-nos a roupa enxuta
de improváveis
viagens, e sempre
o melhor vinho da
colheita
por haver.
Em Coisas que Nunca, mais do
que uma atenta observação da realidade que a rodeia, realidade que é tempo,
corpo, alma; o leitor é não só reconduzido pelos meandros da memória, como também
é confrontado com curiosos retratos dos anseios e das decepções do quotidiano.
Aqui a palavra fácil ludibria a tensão, o sonho é sufocado pelo desalento, por coisas
sem ocidente:
Coisas
que nunca
Coisas que nunca
tivessem ocidente. Crianças
que nunca envelhecessem.
Rios
que não
desaguassem. Coisas
sem o engodo de
crescer
em direcção à
morte.
Fernando Pinto do Amaral e João
Barrento, entre outros, analisando a poesia portuguesa da pós-modernidade,
diagnosticaram-lhe um generalizado e difuso sentimento de melancolia. Ora,
em Inês Lourenço não encontramos propriamente um fio condutor impregnado de melancolia,
mas sim um turbilhão de sensações, resultantes de uma voz insubmissa, que não
esconde uma genuína vontade de transgredir, de sacudir mentalidades, recorrendo
para o efeito a um tom sarcástico e mordaz:
Mamografia
de mármore
Deliciam-me as
palavras
dos relatórios
médicos, os nomes cheios
de saber oculto e
míticos lugares
como a região
sacro-lombar ou o tendão de
Aquiles.
Numa mamografia de
rastreio
a incidência
crânio-caudal seria
um bom título para
uma tese teológica.
Alguns poetas
falam disso. Pneumotórax
de Manuel Bandeira
ou Electrocardiograma
de Nemésio, para
não referir os vermelhos de
hemoptise
de Pessanha ou as
engomadeiras tísicas
de Cesário.
Mas nenhum(a)
falou (ou fala)
de mamografia de
rastreio. Versos dignos
só os de mamilo
róseo desde o tempo
de Safo ou de
Penélope. E, de Afrodite
enquanto deusa, só
restaram óleos e
mamografias de
mármore.
Pedra angular da sua obra é também
o pacto que a sua poesia estabelece com a força pura da palavra, o Verbo. Ao
alternar imagens exteriores com interiores, numa luta anunciada com o tempo, a
palavra não é mais do que a difícil arte de não-ser, nem umas coisas nem
outras.
Para
uma poetisa
Penteei os meus
poemas com madeixas
claras. Com
elegância os lugares
e os dizeres. Só
receio se, na
compostura dos
meus versos, não
consegui decompor
o Tempo.
Mais do que uma poética como limiar
para uma reflexão sobre a transfiguração do quotidiano, a vivência que decorre
do encontro com a poesia de Inês Lourenço apresenta-se como um universo
labiríntico onde se realça, em antagonismo com modernices efémeras e
destituídas de sentido, todas aquelas coisas que nunca deveriam perecer, mas
antes constituírem-se como alimento da memória, a começar pela nossa própria
infância, com todos os estímulos que lhe deram e nos dão consistência:
Berceuse
Canção de embalar
é talvez
demasiado melódico
e além disso
um desuso. Já
ninguém canta a adormecer
os filhos. Coisa
imprópria para o crescimento
de criaturas
autónomas
e hiper-activas
que devem fugir
ao sedentarismo e
à obesidade.
O Canal Panda faz
isso muito melhor
ou qualquer
brinquedo mecânico e perfeito.
Também já ninguém
canta
nos lavadouros
públicos ou nos campos. Os
únicos campos onde
se cantam as brumas
da memória são os
estádios (…)
Com este suave
desmontar da realidade circundante, Inês Lourenço conquista o leitor e convida-o
a participar das suas tentativas de restauração da ordem mental e afectiva no
seu mundo compartilhado, de cuja reorganização todos podem fazer parte. Só a
poesia na sua plenitude poderá ser a lâmina implacável da memória e dar
cor às coisas que nunca:
Becos
Nos velhos filmes
de capa e
espada, tantas
vezes os jogos
mortais de esgrima
confinavam
os heróis aos
recantos de ruelas
sem saída.
um livro de poemas
é um antigo beco
onde a mortalidade
da esgrima
subsiste. Mas é sempre possível
escalar telhados
escorregadios e emboscar-se
numa qualquer
viela
inventada».
In Cidália Dinis, Inês Lourenço,
Recensões, CEM, nº 3, Cultura, Espaço e Memória, Inês Lourenço, Coisas que
Nunca, Lisboa, &ETC, 2010, ISBN 978-989-815-025-7.
Cortesia de CEM/JDACT