«Tinham
passado quase dois anos desde a última vez que vira Santiago Biralbo, mas quando
tornei a encontrar-me com ele, à meia-noite, ao balcão do Metropolitano, houve na
nossa mútua saudação a mesma falta de ênfase que se tivéssemos estado a beber juntos
na noite anterior, não em Madrid, mas em San Sebastian, no bar de Floro Bloom, onde
ele tinha estado a tocar durante uma larga temporada. Tocava agora no Metropolitano,
com um contrabaixista negro e um baterista francês muito nervoso e muito novo que
parecia nórdico e a quem chamava Buby. O grupo chamava-se Giacomo Dolphin Trio:
nessa altura, eu ignorava que Biralbo tinha mudado de nome e que Giacomo Dolphin
não era um pseudónimo sonoro para o seu ofício de pianista mas o nome que tinha
agora no passaporte. Antes de o ver, quase o reconheci pelo modo de tocar piano.
Fazia como se pusesse na música a menor quantidade de esforço possível, como se
o que estava a tocar não tivesse muito a ver com ele. Eu estava sentado ao
balcão, de costas para os músicos, e quando ouvi que o piano insinuava muito vagarosamente
as notas de uma canção cujo título não consegui recordar tive um brusco pressentimento,
talvez essa sensação abstracta de passado que algumas vezes percebi na música, e
quando me voltei ainda não sabia que o que estava reconhecendo era uma noite perdida
no Lady Bird, San Sebastian, onde há muito tempo não vou. O piano quase deixou
de se ouvir, refugiando-se atrás do som do contrabaixo e da bateria, e então,
ao percorrer sem intenção as caras dos bebedores e dos músicos, tão vagas entre
o fumo, vi o perfil de Biralbo que tocava com os olhos semicerrados e um cigarro
nos lábios.
Reconheci-o
logo, mas não posso dizer que não tivesse mudado. Talvez tivesse, só que numa direcção
de todo previsível. Vestia uma camisa escura e uma gravata preta, e o tempo tinha
dado ao seu rosto uma sumária dignidade vertical. Mais tarde dei conta de que sempre
tinha notado nele essa qualidade imutável dos que vivem, ainda que não o saibam,
de acordo com um destino que provavelmente lhes foi fixado na adolescência. Depois
dos trinta anos, quando toda a gente cai numa decadência mais ignóbil que a velhice,
eles aguentam-se numa extrema juventude ao mesmo tempo exasperada e serena, numa
espécie de coragem tranquila e receosa. O olhar foi a mudança mais indubitável que
notei em Biralbo naquela noite, mas aquele firme olhar de indiferença ou ironia
era o de um adolescente fortalecido pelo conhecimento. Aprendi que por isso mesmo
era tão difícil aguentá-lo. Durante mais de meia hora bebi cerveja preta gelada
e observei-o. Tocava sem se debruçar sobre o teclado, mas levantando a cabeça, para
que o fumo do cigarro não lhe fosse para os olhos. Tocava olhando para o público
e fazendo rápidos sinais aos outros músicos, e as suas mãos moviam-se a uma velocidade
que parecia excluir a premeditação ou a técnica, como se obedecessem unicamente
a um acaso que um segundo mais tarde, no ar onde soavam as notas, se organizaria
por si mesmo numa melodia, tal como o fumo de um cigarro forma espirais azuis.
Em qualquer
caso, era como se nada disso tivesse a ver com o pensamento ou a atenção de Biralbo.
Vi que olhava muito para uma empregada fardada e loura que servia às mesas e que
a dada altura trocou um sorriso com ela. Fez-lhe um sinal: pouco depois, a empregada
deixou um whisky sobre o tampo do piano. Também a sua maneira de tocar tinha mudado
com o tempo. Não percebo muito de música, e quase nunca me interessei demasiado
por ela, mas ouvindo Biralbo no Lady Bird tinha notado com algum alívio que a música
pode não ser indecifrável mas contar histórias. Nessa noite, enquanto o escutava
no Metropolitano, achava, de maneira muito vaga, que Biralbo tocava melhor que há
dois anos atrás, mas nos poucos minutos que estive a observá-lo deixei de ouvir
o piano para me interessar pelas mudanças que se tinham operado nos seus menores
gestos: tocava levantado, por exemplo, e não dobrado sobre o teclado como noutro
tempo, algumas vezes tocava a solo com a mão esquerda para agarrar com a outra o
copo ou deixar o cigarro no cinzeiro. Vi também o seu sorriso, não o mesmo que trocava
com a empregada loura. Sorria para o contrabaixista ou para si próprio com uma brusca
felicidade que ignorava o mundo, como pode sorrir um cego, certo de que ninguém
vai averiguar ou partilhar a causa do seu regozijo. Olhando para o contrabaixista
pensei que essa maneira de sorrir é mais frequente nos negros e que está cheia de
desafio e orgulho. O abuso da solidão e da cerveja gelada levava-me a ideias arbitrárias:
pensei também que o baterista nórdico, tão ensimesmado e com o seu ar, pertencia
a outra linhagem, e que entre Biralbo e o contrabaixista havia uma espécie de cumplicidade
racial». In António Muñoz Molina, O Inverno em Lisboa, 1987, tradução de Carlos
Pereira, Quetzal Editores, Lisboa, 1988, NQZ 010-063-888.
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