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Quando acabaram de tocar não ficaram para agradecer os aplausos. O baterista ficou
imóvel e um pouco alheado, como quem entra num lugar com demasiada luz, mas
Biralbo e o contrabaixista abandonaram rapidamente o estrado conversando em
inglês, rindo entre eles com evidente alívio, como se ao soar uma sirene
deixassem um trabalho prolongado e fútil. Saudando de passagem alguns
conhecidos, Biralbo veio ter comigo, embora não tivesse dado em nenhum momento sinais
de me ter visto enquanto tocava. Talvez que antes de eu o ver já ele tivesse
sabido que eu estava no bar e suponho que me tenha examinado tão longamente
como eu a ele, fixando-se nos meus gestos, calculando com exactidão mais inquiridora
do que a minha o que o tempo tinha feito de mim. Recordei que em San Sebastian
o vira muitas vezes andar sozinho pelas ruas. Biralbo movia-se sempre de
maneira dissimulada, como se fugisse de alguém. Alguma coisa disso transparecia
no seu modo de tocar piano. Agora, enquanto o via dirigir-se para mim por entre
os clientes do Metropolitano, pensei que se tinha tornado mais lento ou mais
sagaz, como se ocupasse um lugar duradouro no espaço. Saudámo-nos sem entusiasmo:
fora sempre assim. A nossa amizade tinha sido descontínua e nocturna, fundada
mais na semelhança de preferências alcoólicas, a cerveja, o vinho branco, a
genebra inglesa, o bourbon, do que em qualquer espécie de impudor confidencial,
no que nunca ou quase nunca recorremos. Bebedores inveterados, ambos
desconfiávamos dos exageros do entusiasmo e da amizade que a bebida e a noite
trazem consigo: só uma vez, quase de madrugada, sob a influência de quatro
imprudentes dry martinis, Biralbo me falara do seu amor por uma rapariga que eu
conhecia muito superficialmente, Lucrécia, e de uma viagem que fizera com ela e
de que acabava de regressar. Ambos bebemos demasiado naquela noite. No dia seguinte,
quando me levantei, verifiquei que não tinha ressaca, mas que estava ainda
grosso, e que esquecera tudo o que Biralbo me contara. Lembrava-me unicamente
da cidade onde devia ter terminado aquela viagem tão rapidamente iniciada e
concluída: Lisboa.
A
princípio não fizemos demasiadas perguntas nem explicámos grande coisa sobre a
nossa vida em Madrid. A empregada loura aproximou-se de nós. O seu uniforme
preto e branco cheirava a lavado e o seu cabelo a shampoo. Agradeço sempre
estes cheiros bons nas mulheres. Biralbo gracejou com ela e acariciou-lhe a mão
enquanto lhe pedia um whisky, eu insisti na cerveja. Ao fim de algum tempo
falámos de San Sebastian, e o passado, impertinente como um hóspede, instalou-se
entre nós. Lembras-te de Floro Bloom?, perguntou Biralbo. Teve que fechar o
Lady Bird. Voltou para a aldeia, reencontrou uma namorada que tinha tido aos
quinze anos, herdou as terras do pai. Faz pouco tempo que recebi uma carta dele.
Agora tem um filho e é agricultor. Aos sábados à noite empifa-se na taberna dum
cunhado. Sem que nisso intervenha a distância do tempo, há recordações fáceis e
recordações difíceis, e para mim a do Lady Bird quase me escapava. Comparado
com as luzes brancas, os espelhos, as mesas de mármore e as paredes lisas do
Metropolitano, que imitava, suponho, a sala de jantar de um hotel de província,
o Lady Bird, aquela cave de arcos de tijolo e penumbra rosada, pareceu-me uma
recordação de exagerado anacronismo, um lugar onde era improvável eu ter estado
algum dia. Ficava perto do mar, e ao sairmos de lá a música apagava-se e
ouvia-se o estrépito das ondas contra o Peine de los Vientos. Então lembrei-me:
veio até mim a sensação da espuma brilhando na escuridão e da brisa salgada e
soube que aquela noite de penitência e dry martinis tinha acabado no Lady Bird
e que tinha sido a última vez que estivera com Santiago Biralbo.
Mas
um músico sabe que o passado não existe, disse logo ele, como se recusasse um pensamento
que eu não expressara. Os que pintam ou escrevem não fazem mais do que acumular
passado sobre os ombros, sejam palavras ou quadros. Um músico está sempre no
vazio. A sua música deixa de existir precisamente no momento em que a acaba de
tocar. É o presente puro. Mas ficam os discos. Eu não estava muito seguro de o
perceber, e menos ainda do que eu próprio dizia, mas a cerveja animava-me a contradizê-lo.
Ele olhou-me com curiosidade e disse, sorrindo: gravei alguns com Billy Swann.
Os discos não são nada. Se são alguma coisa, quando não estão mortos, e quase todos
o estão, é o presente salvo. Sucede o mesmo com as fotografias. Com o tempo não
há nenhuma que não seja de um desconhecido. Por isso não gosto de guardá-las. Meses
mais tarde soube que guardava algumas, mas entendi que esse achado não
desmentia a sua reprovação do passado. Confirmava-a bem, de uma maneira oblíqua
e talvez vingativa, como o infortúnio e a dor confirmam a vontade de estar
vivo, como o silêncio confirma, dissera ele, a verdade da música». In António
Muñoz Molina, O Inverno em Lisboa, 1987, tradução de Carlos Pereira, Quetzal
Editores, Lisboa, 1988, NQZ 010-063-888.
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de Quetzal/JDACT