«(…) Com um gesto de cabeça e um
suspiro, fechava essas imagens pintadas no cofre de tesouros do seu espírito.
De Melissa, sua mãe morta, falava menos vezes, mas quando me fazia perguntas eu
recorria na mesma ao livro de histórias; mas Melissa já tinha descido, pálida
estrela, abaixo da linha do horizonte, na imobilidade da morte, deixando aos
outros o proscénio, às figuras vivas do baralho de cartas. A criança lançara à
água uma tangerina e reclinava-se para vê-la rolar no leito arenoso da gruta.
Ficara ali no fundo, trémula como uma chamazinha acariciada pelo afluir e
refluir da corrente. Agora, repara, vou buscá-la. Não com a água assim gelada.
Podes morrer de frio. Hoje não está frio. Repara. Ela nadava como uma lontra
jovem. Da rocha que dominava a água, observando-a, reconhecia nela os olhos
atrevidos e ligeiramente oblíquos de Melissa, e, em certos momentos, como um
resto de sono esquecido nos cantos, o olhar sombrio e indeciso (suplicante,
inquieto) de Nessim, seu pai. Recordei-me de Clea dizendo certa vez: observe bem: se uma rapariga não gosta de
dançar nem de nadar nunca será uma amante perfeita. Sorri e perguntei a mim
próprio qual o valor dessa afirmação, vendo aquela criaturinha mergulhar
docemente na água clara e deslizar com graça para o alvo, os pés unidos com os
dedos apontados para o céu. A mancha do lenço branco em torno da cintura.
Prendeu a tangerina entre os dentes e subiu à superfície, descrevendo uma
espiral perfeita. Vai
secar-te
depressa. Não está frio nenhum. Faz o que te digo, despacha-te. E o senhor corcunda?
Foi-se embora.
A
inopinada aparição de Mnemjian na ilha tinha-a impressionado bastante porque
fora ele o portador da mensagem de Nessim. Foi um espectáculo único vê-lo atravessar
a praia de seixos, com um ar grotesco de receio, como se caminhasse sobre
saca-rolhas e temesse perder o equilíbrio a cada passo. Penso que pretendia demonstrar-nos
que havia muitos anos que não caminhava senão sobre os melhores pavimentos do mundo
civilizado. Era um citadino esquecido da terra que se calca com os pés nus. Emanava
de toda a sua aparência um ar de preciosidade e de finura absolutamente incongruente
nesta paisagem. Vestia um fato prateado, calçava polainas e trazia os dedos
carregados de anéis. Somente o sorriso, um sorriso de bebé, continuava imutável,
e o caracol abrilhantinado ainda se estampava a meio da testa.
Casei
com a viúva de Halil. Actualmente sou o barbeiro mais rico do Egipto. Anunciou-me
aquilo apoiando-se numa bengala de castão de prata, objecto que manifestamente manobrava
há pouco tempo. O seu olho cor de malva avaliou com certo desdém a nossa instalação
bastante rústica e recusou a cadeira, receando provavelmente estragar as calças.
Deve levar aqui uma vida dura, hem? Falta aqui um pouco de luxo, Darley. Suspirou
e acrescentou: mas agora vai voltar para junto de nós. Fez um gesto vago com a bengala
para significar a hospitalidade que a cidade voltava a oferecer-nos. Quanto a mim,
não posso demorar-me. Vou de regresso. Fiz este desvio simplesmente para ser agradável
a Hosnani. Falava de Hosnani num tom altivo, como se agora estivessem os dois no
mesmo plano social; surpreendeu-o o meu sorriso e teve o bom senso de desatar a
rir antes de voltar-se de novo para assuntos graves. De qualquer maneira, não tenho
tempo a perder, disse ele dando um piparote para sacudir da manga um grão de poeira.
Isso tinha pelo menos o mérito de ser verdade porque o vapor de Esmirna só se detém
o tempo suficiente para despachar o correio e descarregar alguns fardos: dois ou
três caixotes de macaroni, alguns sacos
de sulfato de cobre, uma bomba. Os habitantes da ilha têm poucas necessidades. Tomámos
os dois o caminho da aldeia, atravessando o olival, conversando um com o outro.
Mnemjian avançava no seu passo saltitante de pomba, mas eu sentia-me contente
por poder fazer-lhe algumas perguntas a respeito da cidade, ficando a saber,
pelas suas respostas, as alterações que ia encontrar, os elementos
desconhecidos.
Passaram-se
muitas coisas depois de ter começado a guerra. O doutor Balthazar esteve muito doente.
Sabe das intrigas de Hosnani na Palestina? Toda a organização se desmantelou. Os
egípcios tentam confiscar-lhe os bens. Já se apoderaram de muita coisa. Sim, agora
são pobres e longe de estarem livres de apuros. Ela tem residência fixa em Karm
Abu Girg. Há muito tempo que ninguém a vê. Por privilégio especial, ele trabalha
como condutor de ambulância nas docas. Muito perigoso. Durante um bombardeamento
perdeu um olho e um dedo.
- Nessim?
Estava estupefacto. O homenzinho agitou a cabeça com importância. Esta
novidade, esta imagem imprevisível do meu amigo, atingiu-me como uma bala. Santo
Deus, exclamei, e o barbeiro agitou outra vez a cabeça como para aprovar o bem fundado
da minha exclamação. Um duro golpe, concordou. É a guerra, Darley. Depois,
bruscamente, um pensamento mais agradável atravessou-lhe o espírito e o seu sorriso
de bebé alastrou-se de novo, um sorriso que reflectia somente os valores materiais
do Levante. Travando-me o braço, prosseguiu: mas a guerra tem também as suas vantagens.
Corto o cabelo a todo o exército. A minha barbearia está sempre cheia. Três
salões, doze empregados! Há de ver, é estupendo. Como diz o nosso amigo Pombal:
você agora faz a barba aos mortos enquanto
eles ainda estão vivos. E soltou uma risadinha silenciosa e distinta. Pombal
continua em Alexandria?» In Lawrence Durrell, O Quarteto de
Alexandria, Clea, 1960, Publicações dom Quixote, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961,
2012, ISBN 978-972-205-110-1.
Cortesia
PdQuixote/JDACT