quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Os Venenos da Coroa. Maurice Druon. «Poucos dias mais tarde, a San Giovanni já não passava de uma carcaça só com metade dos mastros, a gemer e a fugir das rajadas, a rebolar entre vagas gigantescas, e que o capitão mantinha com dificuldade no que imaginava ser a direcção da costa de França»

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A França esperava uma rainha. Adeus a Nápoles
«(…) Obrigada, minha avó, pensava ela de olhos voltados para a janela onde Maria da Hungria desaparecera instantes antes. Sem dúvida não voltarei a ver-vos. Obrigada por tudo o que fizestes por mim. Aos vinte e dois anos sentia-me desolada por ainda não ter encontrado marido. Já, não tinha esperança de vir a casar e preparava-me para entrar num convento. Fostes vós que tivestes razão para me pedir paciência. E agora vou ser rainha de um reino atravessado por quatro grandes rios e banhado por três mares. O meu primo o rei de Inglaterra, a minha tia de Maiorca, o meu parente da Boémia, a minha irmã delfina do Vienne, e mesmo o meu tio Roberto, que reina aqui e de quem até hoje fui súbdita, tornar-se-ão meus vassalos pelas terras que têm em França ou pelos seus laços com a coroa. Não será tudo isto demasiado pesado para mim? Sentia ao mesmo tempo a exaltação da alegria, a angústia do desconhecido e a perturbação de que é tomada a alma com as mudanças irrevogáveis do destino, mesmo quando ultrapassam o que nos mostravam os nossos sonhos. O vosso povo mostra que vos ama, senhora, disse um homem corpulento que apareceu ao seu lado. Mas estou certo de que em breve o povo de França vos amará igualmente e de que bastará olhar-vos para vos oferecer uma recepção semelhante a este adeus.
Ah! Nunca deixarei de ter em vós um amigo, senhor de Bouville!, respondeu Clemência calorosamente. Tinha necessidade de espalhar a felicidade à sua volta e de agradecer a todos os que a rodeavam. O conde de Bouville, enviado do rei Luís X, e que conduzira as negociações, regressara a Nápoles duas semanas antes para vir buscar a princesa e acompanhá-la a França. E também vós, senhor Baglioni, sois meu amigo, acrescentou, voltando-se para o jovem toscano que servia de secretário a Bouville e tomava conta dos dinheiros da expedição, emprestados pelos banqueiros italianos. O jovem inclinou-se, para agradecer o cumprimento. E na verdade nessa manhã todos se sentiam felizes. Hugo de Bouville, a transpirar um pouco sob o calor de Junho e escondendo atrás das orelhas as mechas de cabelo grisalho, sentia-se alegre e satisfeito por ter cumprido a sua missão e de levar ao rei tão magnífica esposa.
Guccio Baglioni sonhava com a bela Maria de Cressay, a sua noiva secreta, a quem levava uma arca cheia de sedas e de adornos bordados. Não estava certo de ter agido bem pedindo ao tio Tolomei que o deixasse dirigir a sucursal do banco em Neauphle-le-Vieux. Deveria contentar-se com estabelecimento tão insignificante? Ora, é apenas um começo! Depressa poderei mudar de posição, e passarei a maior parte do meu tempo em Paris. Seguro da protecção da nova soberana, não via limites para a sua ascensão. Via já Maria como dama de companhia da rainha e imaginava-se ele próprio, dali a poucos meses, a ser nomeado para um cargo na casa real… Com o punho sobre a adaga, queixo bem erguido, Guccio via Nápoles estendida à sua frente sob a forte luz do Sol. Dez galeras escoltaram o navio até ao mar alto. Os napolitanos viram afastar-se e depois diminuir de tamanho aquela fortaleza branca que singrava sobre as águas.

A França esperava uma rainha. A tempestade
Poucos dias mais tarde, a San Giovanni já não passava de uma carcaça só com metade dos mastros, a gemer e a fugir das rajadas, a rebolar entre vagas gigantescas, e que o capitão mantinha com dificuldade no que imaginava ser a direcção da costa de França. Por altura da Córsega, o navio vira-se envolvido por uma daquelas tempestades tão bruscas como violentas que por vezes ocorrem no Mediterrâneo. Perdera seis âncoras a tentar fundear contra o vento ao largo da costa da ilha de Elba, e só por pouco não fora atirado contra os rochedos. E depois retomara a corrida, por entre verdadeiras muralhas de água. Um dia, uma noite e ainda outro dia continuou aquela navegação pelos infernos. Vários marinheiros foram feridos ao tentar arriar o que ainda restava do velame. As vigias dos castelos tinham desabado com toda a sua carga de pedras destinadas aos piratas. Foi necessário abrir caminho a golpes de machado para libertar os cavaleiros napolitanos que tinham ficado presos pela queda do mastro grande. Todas as arcas de vestidos e de jóias, todas as peças de ourivesaria da princesa tinham sido varridas pelo mar. A enfermaria do cirurgião-barbeiro, no castelo de proa, estava cheia de doentes e de estropiados. O capelão já não podia sequer celebrar a sua missa seca, uma vez que tanto o cibório como o cálice, os livros e os paramentos tinham sido levados por uma vaga». In Maurice Druon, Os Reis Malditos, Os Venenos da Coroa, 1956, tradução de Helena Ramos, colecção Cavalo de Tróia, Gótica, 2006, ISBN 972-792-165-5.

Cortesia de Gótica/JDACT