quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Segredos de Lisboa. Inês Ribeiro e Raquel Plicarpo. «… através de histórias e personagens que poderão ou não ter existido nas várias Lisboas, alguns locais e momentos regressam à luz do dia e partilham o conhecimento de épocas e sítios que muitos desconhecem»

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Vestígios arqueológicos surpreendentes sob as ruas da capital portuguesa
«Ao calcorrear as ruas de uma cidade, poucos são os que sabem que sob os seus pés permanecem escondidos séculos de História, vestígios de várias épocas que estão à espera de, quem sabe, um dia voltarem a ver a luz do dia. Na pressa do dia a dia ou na descoberta de uma nova cidade, é difícil parar e pensar no que já desapareceu, ver para além das pedras da calçada e imaginar os edifícios, ruas e antigas cidades que ali existiram antes. Passear pela Lisboa de hoje é passar sobre todo esse passado desaparecido. Sob os nossos pés, debaixo de linhas de eléctrico, ruas asfaltadas e túneis de metro, camadas e camadas de terra contam as histórias de quem por aqui passou, viveu, morreu. Contam momentos, eras, séculos de vivência de fenícios, romanos, muçulmanos, cristãos, uma imensidão de gentes que nestas colinas deixou a sua marca. Mas o passado não está esquecido. Escavação após escavação, obra após obra, os arqueólogos que aqui trabalham vão descobrindo todo este passado e, com as suas picaretas, colherins e escovas, tratam de o registar e trazer de volta à memória colectiva de um povo. As ruínas de uma casa, um conjunto de cacos, ou uma mão-cheia de espinhas de peixe são para estes profissionais importantes fontes de informação que mais tarde dará origem a mais conhecimento, mais História de Lisboa. Infelizmente nem tudo fica intacto para ser visto e apreciado pelo público, e muito do trabalho que é feito todos os dias, cada intervenção urbana, cada descoberta, fica sob a nova cidade que se vai construindo e reconstruindo. Sempre assim foi nesta Lisboa que já se recriou mais de uma vez. O futuro não pára de chegar, mas não é por isso que o Passado deve ficar esquecido. Nestas páginas, através de histórias e personagens que poderão ou não ter existido nas várias Lisboas, alguns locais e momentos regressam à luz do dia e partilham o conhecimento de épocas e sítios que muitos desconhecem. Alguns deles desapareceram para sempre, mas outros ainda podem ser visitados. Num museu, num parque de estacionamento ou numa casa de banho pública, todos estão à espera de receber visitas!

O castelo de São Jorge. Um gigante de vigia à cidade
Em tantos anos de vida nunca dona Mécia tinha visto tamanha desordem! Por todo o lado se espalhavam pedras de vários tamanhos e pilhas de madeiras, homens sujos trabalhavam numa grande azáfama enquanto outros passavam o dia gritando ordens, os carros de bois e as carroças carregadas de material sempre passando de um lado para o outro, cobrindo o chão de sujidade e largando um cheiro pestilento. Não gostava desta confusão, e assustavam-na os grandes engenhos de madeira, altas torres cheias de cordas penduradas que mais lhe pareciam forcas e que não sabia para o que serviam. Mas o que realmente a incomodava era a poeira, agora sempre pairando no ar, e o barulho constante do bater da pedra. Também não gostava de ter de se desviar do caminho de tantos anos e ser obrigada a dar uma tão grande volta para chegar às cozinhas. As suas pernas já não eram as mesmas que, há mais de 50 anos, haviam entrado naquele castelo conduzindo uma simples criada de cozinha ao seu primeiro dia de trabalho.
Muito tinha mudado desde essa altura. Pelos seus olhos e pelas suas cozinhas tinham passado as refeições de quatro reis, pois ainda vira o velho Afonso IV e o desafortunado Pedro que tantas histórias tinha feito contar por esse país afora. Pior só o seu filho, o desgraçado Fernando, que a si trouxera a má sorte ao casar com aquela Aleivosa, mulher de má fama que tanto mal causara ao reino. Felizmente poucas vezes a servira, pois sabendo-se pouco queridos em Lisboa raramente cá vinham suas majestades. Tudo era diferente agora, com o novo rei João, aquele Mestre de Avis que o povo escolhera ainda há poucos anos num dia sem igual em que a cidade saíra à rua para se fazer ouvir.
Dona Mécia bem ouvira o eco da gente que subira a colina, o bramor da multidão que se concentrara na Sé e no Paço a-par-de-S. Martinho a ver matar bispos e condes castelhanos. Não esquecera os longos meses de cerco que se tinham seguido, com os castelhanos acampados às portas da cidade sem deixar ninguém entrar ou sair. Muito tinha trabalhado nessa altura, tentando acudir a todos os que acorriam ao castelo a pedir a comida que ali também escasseava. Valera-lhes nessa altura a vontade de Deus, que tinha achado por bem enviar a peste aos malditos castelhanos para os obrigar a abandonar os arrabaldes e a voltar para de onde tinham vindo!» In Inês Ribeiro e Raquel Policarpo, Segredos de Lisboa, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-626-706-3.

Cortesia de EdosLivros/JDACT