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«(…) Registem-se a propósito, dois exemplos
que consideramos elucidativos: 1. no
Terceiro Fragmento, Euménio de Rodes alude, sucintamente, às crises políticas
que levam Cinna, Sertório e os outros chefes populares a fugir de Roma para
Itália, onde organizam a resistência e a revolta que levará ao cerco e
posterior capitulação de Roma. Se alguns pormenores sabemos acerca dos
padecimentos na cidade cercada, praticamente nada é referido sobre o modo como
os acontecimentos se precipitaram. A narrativa só é preenchida quando a voz de
Euménio de Rodes cede lugar à voz de Lúcio Hirtuleio, fiel amigo e colaborador
de Sertório, testemunha e participante dos acontecimentos que agora lhe cumpre
relatar. 2. no capítulo intitulado A
Corça, cabe a Medamo não só dar a sua versão sobre uma pequena parte do seu
tempo de infância, como também, e sobretudo, continuar e concluir a narrativa
sobre Sertório, não sem antes ter dado conta dos acontecimentos que cumprem a
profecia da voz da deusa da Serra da Lua. Este procedimento pluridiscursivo
havia já aparecido ensaiado em O Trono do Altíssimo, romance cuja trama
gira à volta da evolução e declínio do Priscilianismo, doutrina de filiação
gnóstica que durante cerca de dois séculos (IV e V d.C.) disputou terreno com a
ortodoxia católica. Assim, neste romance o narrador heterodiegético, cada vez
menos omnisciente, cede, por isso, temporariamente lugar a outros registos e a
outras vozes. Deste modo, no Livro I, é Restituto quem faz o relato da viagem a
Roma, onde uma embaixada de Priscilianitas se desloca com o duplo intuito de
esclarecer Dâmaso, o santo papa romano, sobre aspectos fundamentais da doutrina,
refutando as acusações de heresia, gnosticismo e maniqueísmo e de, na corte,
obter a anulação do rescrito que desterrava alguns bispos priscilianitas.
No Livro II, é através do discurso
epistolar entre Quintiano e Restituto (390-409 a.C.), cuja perícia como
contador da verdade o primeiro atesta, que conhecemos os negros anos de
384 -385 em que, sob um império repartido por três Augustos, se
intensificam as perseguições aos seguidores desta doutrina, que culminam com a
execução em Treveris de Prisciliano e alguns companheiros.
No Livro III, novamente se ouve a
voz do narrador, agora coadjuvado por Vitimer, noviço no mosteiro de Dume,
cujos pensamentos e actos servem de trilho para conhecer umas últimas epístolas
de Quintiano, religiosamente guardadas porque a serem divulgadas lançariam a
desordem entre os simples e a santa fé católica deve ser defendida a
todo o custo, guardando-se contra cismas e traições heréticas.
Porque, acrescentamos nós, poriam em causa uma verdade construída de acordo com
interesses particulares da instituição religiosa. Mantêm-se, em suma, as traves
mestras da História, de resistência contra a opressão da República Romana, de
lutas pelo poder em Roma, de tentativas de implementar novas doutrinas,
sustentadas por traves de menor envergadura, mas não menos importantes, até
porque representam o resultado de um aturado trabalho de investigação, que o
autor não renega, mas que, tal como Garrett, sacrifica às musas de Homero,
não às de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo
de melhor verdade(Garrett,1973). Criam-se, afinal, pequenos mundos possíveis
(Albaladejo, 1986) em que, e também porque as palavras e os actos das
personagens não entram em conflito com as canónicas versões dos historiadores
(Halsall,1984), é difícil destrinçar fronteiras nítidas entre a verdade
histórica e a verdade ficcional, apesar de alguma clarificação ser facultada
pelas Notas Finais. Sublinhamos alguma clarificação porque, segundo cremos, e
já o dissemos por outras palavras, a investigação histórica é, à partida,
viciada e selectiva, logo pretensamente objectiva. De acordo com Elisabeth
Wesseling essa selectividade radica em três diferentes causas, a primeira das
quais diz respeito ao facto de apenas se poder investigar o que conseguiu
sobreviver até à nossa época; a segunda prende-se com as questões que se
pretende ver respondidas, o que leva à selecção de certas fontes em detrimento
de outras; a terceira é uma causa política, na medida em que a História apenas
se preocupa em deixar os registos de indivíduos e colectividades que, num dado
tempo, por obras e feitos se destacaram (Wesseling,1991). Julgamos, contudo, e
para terminarmos esta breve incursão pelos romances históricos de João Aguiar,
que nada melhor do que as palavras de um autor clássico para validar os processos
de um autor contemporâneo cuja obra, não só mas também, revive e reescreve
legados da cultura clássica». Ana Paula Arnaut, A Ficção de João Aguiar, A
alquimia de uma escrita múltipla, Comunicação apresentada em Janeiro de 1997,
Estudos Clássicos da FLU de Coimbra, revista HVMANITAS- Vol. XLIX (1997), ISSN 2183-1718.
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