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O oráculo
«(…) O parto foi demorado, mas sem grandes
sobressaltos; depois de me terem lavado e enfaixado, as mulheres colocaram-me
no solo, para que eu recebesse as bênçãos da Mãe Terra, e abriram a porta. O
meu pai entrou, seguido do meu tio e de alguns vizinhos, encarregados de
testemunhar que Tongétamo, ao tomar-me nos braços para me entregar à esposa,
reconhecia-me como seu filho verdadeiro e legítimo. O primeiro filho, um varão,
continuador do seu nome e, talvez, o seu vingador... Porém o meu pai olhou-me
com ternura mas também com tristeza, como quem olha para uma última esperança
que se desfaz em fumo. Ao contrário do que esperava Camala, o marido nunca se
adaptou à nova existência. Recusou-se com obstinação a secundar o cunhado nos
negócios (para não parecer um ingrato ou um parasita, ofereceu-se como
comandante das escoltas de protecção às caravanas; a minha mãe opôs-se porque
isso o afastava dela e tudo voltou à mesma). Passeava, só e sombrio, pelas ruas
de Balsa. O mar, que é para os Cónios a imagem viva e movente de um deus
temível mas também generoso, enchia-o de mal-estar e terror. Vivia esperando
novas da Lusitânia e passava longas tardes nas tabernas ou no mercado à procura
de viajantes vindos da Calécia. Por respeito para com a mulher, prestava
homenagem aos deuses de Balsa, mas não descansou enquanto não esculpiu de
memória uma tosca imagem de Tongoenabiago, o deus tutelar de Brácara. Colocou-a
no pátio, junto da fonte (tal como o deus se encontrava na sua cidade natal) e
perante ela fazia os sacrifícios e libações. À medida que o tempo foi passando
mais distante e triste o meu pai se mostrava. Quando, por insistência da
mulher, deixou de escoltar as caravanas de Camalo, guardou cuidadosamente as
armas, uma espada e uma adaga, como se viesse a precisar delas a qualquer
instante. Um dia, correram em Balsa notícias interessantes: tribos lusitanas
tinham invadido a Carpetânia e travavam uma luta vitoriosa contra o exército
romano. O meu pai escutou estas notícias deliciado. Na impossibilidade de se
vingar dos inimigos da sua família, dirigira o ódio contra os Romanos, que
procuravam assenhorear-se de toda a Ibéria, e várias vezes entrara em conflito
com o meu tio, obrigado pela sua condição de mercador a manter boas relações
com toda a gente e, sobretudo, a não hostilizar as autoridades de Roma. Quando
os rumores sobre a guerra se tornaram mais insistentes, Tongétamo, uma noite, foi
buscar as suas armas, só para as ver, como quem contempla a mulher amada.
Esperava-o um choque. A minha mãe sempre jurou nada ter feito, mas o certo era
que o couro das bainhas fora embebido em água e tanto a espada como a adaga
estavam irreconhecíveis, negras de ferrugem. Tongétamo passou o resto da noite
a reparar os estragos, a afiar e olear as lâminas. Tornou-se ainda mais sombrio,
e a minha mãe mais possessiva, absorvente e sofredora. Veio o Inverno, as rotas
marítimas e terrestres fecharam-se e nada mais se ouviu sobre a guerra até à
chegada da Primavera, altura em que se soube apenas que já não havia Lusitanos
na Carpetânia. Pouco depois, eu completei três anos de idade. No dia do
aniversário, o meu pai esteve mais tempo comigo do que era habitual e ofereceu
em minha intenção um sacrifício a Tongoenabiago. À noite parecia bem disposto,
quase alegre. Foi buscar a espada e colocou o punho da arma nas minhas mãos,
que, de tão pequenas, não conseguiam agarrá-lo. Sorrindo, disse em voz
suficientemente alta para ser ouvido pela mulher e pelo cunhado: toma-a, meu
filho. Já não tenho uso para ela, mas quando cresceres será tua! A minha mãe
acercou-se, intrigada com a sua atitude. Ele riu, passou-lhe o braço pela
cintura e puxou-a suavemente na direcção do quarto. Na manhã seguinte os
escravos encontraram-no aos pés da estátua de Tongoenabiago; matara-se com a
adaga; o sangue, ao saltar da ferida, salpicara a imagem do deus. Tinha vinte
anos». In João Aguiar, A Voz dos Deuses, 1984, composição de Maria Samagaio,
2005, Lisboa, Sandra Ferreira, 2007, Grafiasa, Asa Editores, Rio Tinto, ISBN
978-972-411-072-1.
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