Cortesia
de ibamendes
«Naquela
tarde mormacenta de Fevereiro, João Silveira embarcara em Lisboa, no Almeria,
com rota para a América do Sul. Considerava-se um sem-pátria, agora, na sua boa
e amorável terra, sobre cujo manso e carinhoso seio não fumegavam senão
escombros; terra perdida e maldita, pelo jacobinismo vermelho do 5 de Outubro
abalada nos seus fundamentos e furtada criminosamente ao seu destino. Todo o
ambiente tradicional em que havia sido criado, este parasitário rebento do
velho regime vira-o derruir de roda de si com estrondo. Crenças, privilégios,
isenções, benesses e preferências, toda essa contrafeita armadura de iniquidade
e obscurantismo que sustinha ainda de pé a combalida ficção monárquica, tudo
rolara desfeito, num epilepsiado arranco, numa comoção formidável, enquanto
invadia ferozmente o espaço em torno um caótico fumo de confusão e de treva...,
e a visão inquieta do futuro envolta num torvo mistério, como um polvoréu de
ruína. Tudo lhe havia quitado descaradamente esta estupida ideia da República:
os cincuenta mil reisitos que ele, mensalmente, ia ou mandava com toda a pontualidade
receber, a titulo dum amanuensado hipotético na Junta do Crédito Público; as
boas graças da sua apetecida noiva, a Laurita, filha dum acaudalado burguês e
pelo pai abominavelmente educada, a qual agora, com o Afonso Costa no poleiro,
já cantava também de papo; e até, o seu pensamento hipócrita rematava, e até as
nobres, as suavíssimas cores da bandeira de seus avós, esse azul calmo e esse
branco ingénuo, símbolo irrefragável da alma nacional, ora via suplantadas por
um vermelho de açougue e um verde de curral, duas tonalidades irreconciliáveis,
duas cores ásperas, irritantes, heréticas, como punhais, como blasfémias. Durante
os primeiros meses da República, João Silveira, como tantos outros, conspirou.
Aquecia-lhe a alma este vago sebastianismo solapado no íntimo de todo o
bom português, acicatava-lhe o desejo a gulosa lembrança daqueles magros cobres
orçamentais que, somados ao activo do seu escasso património, lhe serviam a
governar sofrivelmente a vida. Assim, na sua ferina hostilidade contra o novo
regime, concorriam simultâneos a alma e o estômago, uma predilecção ancestral e
um instinto devorista. E foi certamente esta dualidade antinómica de inspirações
que, embora visando ambas o mesmo fim, cardou a sua actuação de conspirador de
todo o carácter excessivo. Porque este cauto Silveira firmou várias adesões e
compromissos, fez nutrida propaganda verbal entre os rústicos, prontificou-se a
recrutar gente, enviou mesmo algum dinheiro; mas sem arriscar-se nunca
pessoalmente no campo da luta militante. Após a frustrada incursão de Chaves,
não quis mais. Os seus 40 anos previsores e calculistas haviam grado em grado
esmoitado, na gafa estrutura moral deste malogrado de Artagnan, o espírito de
aventura.
Vendeu
a sua reputada vinha do Pinhão, arrendou a linda quinta da Folgosa com o solar de
sete capelas, o seu fidalgo berço natal e residência muito em conta quando
em apuros de dinheiro; a noiva escreveu que a sua dignidade, em briga com o
seu amor, o forçava àquele exilio doloroso; e aí o temos agora dobrado com
indolência sobre a amura do Almeria em marcha, vergado o busto, as mãos
pendentes ao abandono, evitando olhar o manso deslize da cidade donde sentia
que lhe vinha um frio vento de repulsa, com as pálpebras frouxas seguindo, em
baixo, o rasgar da proa pela limosa torrente caudal do rio, e os lábios vorazes
vagamente encrespados na voluptuosa antevisão do Desconhecido.
Primogénito dos três filhos dos Silveiras Lobo, de Mosteiro, o pequeno João
fora criado com todas as mimadas preferências e toda a jactanciosa
despreocupação dos antigos morgados. Todos os perniciosos desvios havia-lhe
consentido o dissolvente meio familiar e este odioso prejuízo educativo, todos:
desde o achincalho, o abandono burlão dos mestres, até ao abuso feudal das
raparigas. Daí que, resultando uma organização inadaptável ao trabalho e um
carácter voluntarioso e cego, o Silveira havia consumido o melhor da sua vida
ou bambochando em saborosas sensualidades, ou luzindo em bárbaras pimponices,
porém um mísero hóspede sempre da pura emoção, sempre refractário as reaçções
da alquimia ideal do sentimento. Alto, forte, moreno, com uns negros olhos dominadores
e uma estrutura apolínea, entretanto no seu belo rosto varonil espatinava-se a
tinta de vulgaridade que imprime às fisionomias de hoje a dureza, a ausência do
sentir. Pronto sempre e alerta ao galanteio, a volúpia, a brutalidade, ao
prazer, nunca até aquele momento se sentira capaz duma paixão que o arrancasse
a si mesmo, que montasse o seu egoísmo e as suas ambições tacanhas, que lhe
pusesse asas na vontade e lhe espiritualizasse o desejo. Nutria um tédio
altaneiro pelos aspectos triviais da vida, este tédio que e o triste apanágio
das almas sem voo, dos corações vazios. Jamais consentira intimidades e votava,
pelo geral, aos homens um desdém cortês, as coisas uma indiferença amável». In Abel
Botelho, Amor Crioulo, 1913, Projecto Livro Livre, livro 399, Poeteiro Editor
Digital, Iba Mendes, 2014.
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