Cortesia
de IbaMendes
Como
eu atravessei a África do Atlântico ao Mar Índico. Viagem de Benguela à
Contra-Costa, através de Regiões Desconhecidas
«Não
tem pretensões a obra de literatura este livro. Escrito sem preocupação da forma,
é a fiel reprodução do meu diário de viagem. Cortei nele muitos episódios de
caçadas, e outros, que um dia no descanso, produziram um volume de carácter
especial. Busquei sobre tudo fazer realçar o que mais interessante se tornava
para os estudos geográficos e etnográficos, e se não me pude eximir a narrar um
ou outro dos muitos episódios dramáticos que abundaram na minha fadigosa
empresa, foi quando a esses episódios se ligavam factos consequentes, de importância,
já para alterar o itinerário projectado, já determinando demoras, ou marchas
precipitadas, que seriam incompreensíveis sem a exposição das causas
determinantes. À Europa, e em geral ao homem que nunca viajou nos sertões do
interior de África, não é dado compreender o que se sofre ali, quais as
dificuldades a vencer a cada instante, qual o trabalho de ferro não
interrompido para o explorador. As narrações de Livingstone, Cameron, Stanley,
Burton, Grant, Savorgnan de Brazza, d’Abbadie, Ed. Mohr e muitos outros, estão
longe de pintar os sofrimentos do viajante Africano. Difícil é compreendê-lo a
quem o não o experimentou; àquele que o experimentou difícil é descrevê-lo.
Não
tento mesmo pintar o que sofri, não procuro mostrar o quanto trabalhei, que me
façam ou não a justiça de que me julgo merecedor aqueles que examinarem os meus
trabalhos, hoje é isso para mim indiferente; porque me convenci, de que só posso
ser bem compreendido pelos que como eu pisaram os longínquos sertões do continente
negro, e passaram os maus tratos que eu por lá passei. Assim como só o homem
que, sendo pai, pode compreender a dor pungente da perda de um filho, assim
também só o homem que foi explorador pode compreender as atribulações de um
explorador. Há sentimentos que se não podem avaliar sem se haverem
experimentado. Os factos narrados neste livro são a expressão da verdade.
Verdade triste muitas vezes, mas que seria um crime ocultar. Procurei
apresentar nele os resultados de um trabalho aturado de muitos meses, e garanto
o que digo sobre geografia Africana, porque só eu sou autoridade para falar
nela na parte respectiva à minha viagem, em quanto outro não houver seguido os
meus passos através de África, e não me convencer do contrário.
As
minhas opiniões genéricas sobre um ou outro problema podem ser errôneas, são
sujeitas à crítica, podem cair por terra com uma demonstração prática das futuras
viagens, como tem acontecido a asserções de muitos dos meus antecessores os
mais ilustres; mas o que não tem nem pode ter contestação, são os factos que eu
vi, são aqueles que se referem aos países que percorri, e que descrevo neste
livro com a consciência que deve sempre ditar as acções do explorador. Não fui
à África ganhar dinheiro. Tive a mesquinha paga de oficial do exército e não quis
outra. Abandonei uma família extremosamente querida; deixei a pátria e tudo
para trabalhar, e só para trabalhar, em cooperação com os outros países, na
grande obra do estudo do continente desconhecido, e tenho a consciência de que
fiz tanto quanto podia fazer. Deixo aos homens de ciência e àqueles que são
autoridades em tal matéria avaliá-lo. Ponho ponto neste assunto que parecerá
filho de um orgulho que não tenho, mas factos insólitos aparecidos no decurso
dos primeiros meses da minha residência na Europa, depois de ter completado a
fadigosa jornada de África, ditaram as palavras que escrevi.
Há
um ano que comecei a coordenar em livro os resultados dos meus trabalhos Africanos,
mas uma pertinaz doença por vezes interrompeu a vontade que nutria de dar à
estampa esses trabalhos. Principiado em Londres em Setembro de 1879, o meu
livro foi quase todo escrito nos meses de Setembro e Outubro, de 1880, na
Figueira da Foz, em Portugal. A pressa com que foi terminado contribuirá
decerto muito para a incorreção da forma. A publicação dele é feita em Londres,
onde encontrei na grande casa editora Sampson Low, Marston, Searle and
Rivington, todas as facilidades que não pude obter fora dela. Estes cavalheiros
não recuaram ante a enorme despesa a fazer com uma tão difícil e custosa
publicação, e levaram a sua condescendência a fazer imprimir em Inglaterra a
edição Portuguesa; trabalho dificílimo, porque a diferença das línguas dos dois
países obrigou até à fundição de tipo, por causa dos sinais e acentos privativos
do nosso idioma. Devo-lhes a maior gratidão pelo interesse que tem dedicado a
esta publicação, para o mérito da qual, se é que ela tiver algum mérito, eles
decerto concorreram muito. O sr. António Ribeiro Saraiva, que, apesar dos seus
trabalhos e da sua avançada idade, me quis fazer o favor especial de rever as
provas do livro; o sr. E. Weler, o cartógrafo, que se encarregou da gravura das
minhas cartas geográficas; o sr. Cooper, que interpretou magnificamente os meus
esboços de viagem nas gravuras que ilustram a obra, concorreram também decerto
muito para o valor dela. Aí vai, pois, o livro, e só desejo que ele corresponda
e sirva à curiosidade de uns e ao estudo de outros; e venha dar novos
incitamentos à grande e sublime cruzada do século XIX, a cruzada da civilização
do Continente Negro». In Londres,
61 Gower Street, 5 de Dezembro de 1880, Alexandre Serpa Pinto, Como eu
Atravessei África, 1881, Projecto Livre, livro 502, Poeteiro Editor Digital, S.
Paulo Brasil, Iba Mendes, 2014.
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