domingo, 3 de janeiro de 2016

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. «Este sentimento, aliás naturalíssimo mas pouco generoso, determinou a reacção da parte dos brâmanes em 1787 pela ‘Conjuração dos Pintos’. Os ‘charadós’ mais generosos e guerreiros do que os brâmanes, receberam-nos com menos relutância»

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Goa
«(…) Esta classe indígena cristã perdeu tudo, porque enquanto uma porção dela se esforça por civilizar-se, e o tem conseguido em parte, a outra, a mais numerosa, conserva-se no nível em que a foram encontrar os portugueses, ou por falta de aptidões, ou porque camadas superiores a esmagaram na luta. Os charadós e os sudras formam a maior parte da população de Goa. Apartados, como estão no seu conjunto, dos aryas ocidentais e insuperavelmente desligados dos aryas orientais, os brâmanes, ocupam assim um lugar pouco azado para o seu desenvolvimento. Antes deles, estão ali o elemento branco a influir nas sociedades, e o elemento bramânico a neutralizar-lhes as aspirações pela autoridade quase religiosa de casta, e pela incontestável superioridade de raça. Como existe um antagonismo mais pronunciado entre os brâmanes e os charadós do que entre estes e os portugueses, todo o empenho dos segundos é suplantar os seus adversários de casa, os brâmanes, ficando, por este modo, a civilização europeia um degrau acima das suas primeiras e naturais aspirações. É claro que a influência numérica alcançou uma preponderância positiva na política do país. Os brâmanes são batidos na urna e esta vitória efémera consideram-na os charadós como a última solução do problema político-castista.
Mas a questão social, a evolução dessas sociedades, que é feito delas? Por outro lado, os brâmanes, por isso que são nossos irmãos, sentem-se com orgulho bastante para desprezar a civilização que nós lhes levamos. Mas há a notar que os brâmanes cristãos de Goa, porventura por terem abraçado a nossa religião, não são ciosos das suas tradições, e todo o seu empenho é exceder o europeu, no que ele tem de externo, sem contudo perder aquela relutância instintiva por tudo quanto é ocidental e o espírito de casta, o que necessariamente lhes impede uma transformação radical e duradoura. Ao passo que os indígenas pagãos se conservam firmes no lugar em que os fomos achar, religiosamente conservadores e fazendo parte da grande sociedade industânica de além dos Gattes, os cristãos de Salcete, Bardez,e Ilhas ficaram ocupando um lugar muito inferior na acepção histórica da palavra. Prevê-se o resultado destes elementos postos em contacto.
A acção partiu primeiro da colónia portuguesa, como dominante. Para isso ela criou um meio que fosse adequado à sua índole e ao seu temperamento, o militarismo. Nascidos nessa época de heroísmo e abnegação, educados guerreiros, os portugueses não fizeram mais do que mudar de terreno; continuam no Oriente o que foram no Ocidente, raça de aventureiros. Mas pelo seu limitado número e com um único meio de influir, o exército, não puderam conseguir o que outras colónias mais previdentes têm alcançado. Arrastados pela vocação militar, dispunham apenas de um meio para influírem em sociedades pusilânimes e por índole adversas ao regime espartano. Se à variedade de acção se unisse a multiplicidade de meios, que tendem a relacionar mais os factores sociais e a estreitar os seus laços, quer pela comunidade de interesses, quer pela dependência de serviços, outro teria sido o estado desses povos, outra a situação da colónia portuguesa. Como o militarismo era o seu único modo de ser, e habituados como estavam os portugueses ao trato com os árabes, tanto no reino como em outros pontos da Ásia, sofreram uma completa desilusão ao se acharem frente-a-frente com um povo imberbe e servil. O que daí resultou foi o constante desprezo com que eles sempre trataram os indianos, um desprezo tão profundo e tão natural, que não havia português que não se julgasse com coragem bastante para levar de investida uma povoação inteira.
Este sentimento, aliás naturalíssimo mas pouco generoso, determinou a reacção da parte dos brâmanes em 1787 pela Conjuração dos Pintos. Este movimento continuou e nós veremos de que modo. Os charadós mais generosos e guerreiros do que os brâmanes, receberam-nos com menos relutância e, por isso, em vez de um antagonismo formal, pelo menos histórico, entre eles e nós, voltaram-se contra os seus antigos émulos, a quem não podiam admitir a ascendência que iam ganhando num país em que eles se sentiam com mais direito pela sua força numérica. Esta luta tem uma data histórica: a da fundação do Índia Portuguesa (1861), jornal que servia de órgão aos charadós». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.

Para Ofélia e Álvaro José, que estejam em paz!

Cortesia de Ésquilo/JDACT