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A
Mudez
«(…) Os arranques da mãe chegam à
sala quase intactos. Maina Mendes sabe que os grossos flancos moles onde uma
cabeça pequena se afunda ao querê-lo, os flancos da mãe cobertos de tecidos ainda
crespos, onde ela finca as mãos e enterra os olhos a não ver o brilho dos
dentes e mãos estendidas. tão linda que é a menina, dá um beijinho, dá?,
tios que não conhece, ou conhece um nojo renovado, as fartas, redondas carnes
da mãe à altura de sua cabeça, oscilam e que a Hortelinda secou as mãos ao pano
de quadrados já tão trapo de águas torpes e caminhou da cozinha para aquelas
massas fluidas, capazes de ruir se lhes não acode a bruta mão de batedeira de
outras, de esfregadeira, da Hortelinda com sua cabeça de martelo sem cabo.
Do relógio vêm golpes cantados,
fremindo nos dedos precários dos crisântemos, nas porosas, pequenas cabeças das
ossadas de esponja e nos polidos beiços dos búzios rosa, quase roxo e amarelo de
sol morrente em dia de chuva acabada, sempre entreabertos, sempre quatro os maiores,
a cada canto da sala. Maina Mendes vai às vezes aos menores, aos da mancha em
dedada negra, fecha os olhos e põe-se naquele ulular de vento longe, ela sabe
que de vento e não de mar.
A rua oscila para lá do bafo e do
vidro desenhado, espalmado o queixo e a nariz sentido grosso. A carroça de
hortaliça vai adiante. As cenouras em molhada rija e fria tombam no verde
viscoso, nas grossas folhas percorridas de brancas firmezas que se quebram e
afastam por sobre o nabo roxo ao começar, no sangue escuríssimo das beringelas,
e tudo oscila e bate cavo na madeira estalada e chiam as rodas no bradar rouco
do pregão junto aos brandos haustos da mãe lá dentro. O rapaz sem sapatos, que
prende ali a arreata do burro e levanta a cabeça às manchas da janela, tem um lenho
seco na cara e a jaqueta estripada e as calças sobre a perna, onde há desenhos
de água com terra e palha presa, acabam em fiapos e troços de linha de outra
cor. O homem brada para o outro lado da rua, ao ar alto, a mão em garra mal
aberta. O rapaz está agora muito quieto, decifrando a janela como pode e
interroga, apenas a narina não serena. Rijo momento sem estima, rijo momento o
do embate vero das criaturas sem pertença e sem partilha, centelha do
movimento, isenção da falsa paz do reconhecido. saciada, Maina Mendes move-se e
o rapaz lhe envia, no quebrar e saudar do instante fecundo, o gesto antigo, que
castamente reveste da boçalidade de sua habituada condição. Cerra o punho e
ergue o braço e assenta-o no ombro e ri-se muito, e quebra-se rindo e o gesto
vai e vem, sem largar dos olhos a mancha branca e grave engastada no azulejo,
no prédio, no vidro. Maina Mendes limpa, em movimentos redondos e com pressa,
um círculo que no vidro lhe liberte a cara e o tronco e, sempre grave de olhos
e de têmporas, larga-lhe a língua a[é à dor rasgando-a nos tendões que a suportam
e devolve-lhe o gesto, erguendo à testa o punho cerrado, flectindo por igual
seu braço sem canseira, amolgando a cara e espraiando a língua solta no vidro
frio e corredio.
O rapaz ri-se muito e mais e já
soluça e segue a virar-se ainda, que o homem já grita anda, besta! A
carroça vai chiante no peito de Maina Mendes que repete, batendo a dor que tão
rara lhe é, presa aos tropeços do burro e do verdor e à ida da jaqueta coçada e
da cabeça curta onde os cabelos se agregam por grumos tenazes: rapaz da rua,
ó rapaz da rua, rua, rua... No passeio de lá, da capelista dos carrinhos de
linha de rodar trens e montar moinhos de papel a destruir breve, sai uma mulher
de cara presa num véu que parece suportar-lhe ainda as flores, lilases rijos
tombados no chapéu. Depois do busto, sustentado alto por sob o queixo
aconchegado dos dedos nas mitenes a alijar as barbas da gola hirta, depois da
cinta mutilada à dimensão menor, são as laçadas que apanham as pregas largas
sobre a construção de nádegas duplas, as pregas que se erguem pontuando o passo
cuidadoso e descem ao empedrado onde a fímbria de cheviote castanho se vai
debruando de lama, de cuspo, de uma ou outra espinha largada e está já de um
outro tom, o sujo». Maria Velho da Costa, Maina Mendes, 1969, Publicações dom Quixote,
2001, ISBN 972-201-075-1.
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