Ana de Castro e o Salvamento da Clepsydra
«(…) Assistia, quase sempre, aos seus almoços no
hotel e dali começavam as peregrinações pela cidade, […] À tarde, o habitual
encontro com os literatos, seus amigos, frequentemente no Café Martinho. Ali
conheci Henrique Trindade Coelho, Carlos Amaro, etc. Camilo que, atento à minha
idade, tinha o cuidado de me fazer merendar, preferia para si o bom café [...].
Naquela mesa de Camilo Pessanha a poesia era senhora absoluta e todos o
escutavam com religioso silêncio e rendido entusiasmo […]. Contudo, o ópio,
que foi a maldição da sua vida, não o deixava em paz: de vez em quando, parando nas nossas caminhadas, Camilo Pessanha,
absorto, tirava do bolso do casaco uma pequena caixa de papelão, destas que as
farmácias dão com as receitas coladas e, sem olhar com os seus finos dedos tacteando
num pó amarelo, tirava um pequeno grânulo, não sei se mais do que um, muito
escuro, e levava-o à boca. Só depois eu soube, por meu tio Alberto, que era a
terrível droga que em Macau, fumada a longos haustos, lhe repunha as
forças e o tornava à vida. O jovem conta que Camilo Pessanha recitava, a
seu lado, os versos pelas ruas de Lisboa, e a forma como o fazia: vivendo eu num meio de literatos, nunca tinha
dado pela maravilha da poesia em sua música própria. Só muitos anos depois o
sentiria de novo, ouvindo poemas de Cecília Meireles por ela recitados. Camilo
Pessanha possuía a musicalidade dos seus versos, como que em estado natural. Da
sua poesia, era ela a música essencial e suplicada. Recitando, dir-se-ia que
acordara de uma abstracta melancolia para ser ele o choro, a tristeza, a
emotividade e a dor dos seus próprios versos. Quando, senhor da minha missão, sentia,
com orgulho, o braço de Camilo Pessanha apoiado no meu e o ouvia, talvez
julgando-me desatento, recitar, recitar sempre e a pequenas pausas, que pena
tinha ao pensar que a memória me não guardasse aqueles versos e aquela música!
Felizmente, tanta vez lhe ouvi os poemas que um dia haviam de formar a Clepsydra que era quase perfeita a sua
imitação. Durante anos, em muitas circunstâncias da minha vida, recitava poemas
seus como ele.
Neste belíssimo
testemunho, conta-se ainda, sem poder precisar, que numa revista ou jornal
ilustrado, fora referido ter sido visto: Camilo
Pessanha, já cego, caminhando nas ruas de Lisboa guiado por um rapazito loiro.
Não posso garantir a exactidão dessa referência que nunca consegui encontrar. Fosse
como fosse, fica feita agora a identificação do mocito loiro. Eram,
efectivamente, dessa cor os meus cabelos. O que o poeta não estava era cego,
isso não, embora lhe servissem os meus olhos para poder ele evadir-se com a sua
poesia e caminhar sem usar os seus. Antes de publicada a evocação de Camilo
Pessanha, António Osório Castro enviou o texto dactilografado para apreciação do
seu primo e grande amigo João Castro Osório, a amizade que os unia era de
irmãos verdadeiros. Conservo as seis páginas manuscritas nas quais João Castro
Osório se pronuncia sobre esse trabalho: gostei
muito do teu breve ensaio psicológico sobre Camilo Pessanha e sobre ti também.
E vejo que a tanta distância, no tempo, o poeta foi uma profunda influência na tua
alma (...). O que relembras está certíssimo e até me vem tirar algumas dúvidas,
quanto a datas.
Por último, renova os
agradecimentos comovidos por tudo, na referência a minha mãe (e bem posso dizer
nossa) e ao meu esforço. E elucida o primo sobre a revista onde se refere
que Camilo Pessanha cego era guiado pelos olhos de uma criança em que
se apoiava: é a Portucale, 1931. Camilo Pessanha e Raul Brandão, duas grandes
almas, também nisso próximas: gostavam de passear por Lisboa guiados pelos
olhos de jovens amigos, como se fossem cegos, melhor, como se dependessem,
andando, tão-só do afecto de alguém. Camilo deu um merecido prémio ao cedido
pajem, fazendo-se retratar com ele, no dia 30 de Março de 1916.
É uma das mais calmas (diria mesmo, felizes) fotografias de Pessanha, não
falando, claro, no jovem, exultante. Além da missão de o levar a sua casa, o pajem
satisfazia outro feminino cuidado: ser o companheiro, como escreve João Castro
Osório, vigilante de Camilo Pessanha, em
suas andanças diurnas, entre o almoço e o jantar, evitando que, na distracção
frequente, [...] ele fosse atropelado ou se perdesse durante horas, pois,
memória maravilhosa em tantas actividades mentais, não conseguia fixar qualquer
caminho, com segurança, na cidade». In António Osório, O Amor de Camilo
Pessanha, edições ELO, obra apoiada pela Fundação Oriente, colecção de Poesia e
Ensaio, Linha de Água, 2005, ISBN 972-8753-43-8.
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