Cortesia de wikipedia e jdact
«George
Edward Stanhope Molyneux Herbert, visconde de Porchester, chamado Porchey pelos
seus raros íntimos e considerado pelos invejosos como o futuro Lord Carnarvon,
deu um soco na cara do marinheiro grego que recusou obedecer às suas ordens. A
bordo do seu iate Afrodite, era o único patrão e não admitia que se lhe
atravessassem no caminho, mesmo que uma violenta tempestade semeasse o pânico
no meio da tripulação. O grego levantou-se atordoado. O seu cozinheiro está
tramado... faria melhor em tomar conta do leme. Uma crise de apendicite não é
uma condenação à morte. Deveria saber, meu amigo, que a Afrodite é uma deusa do
mar; durante a operação, entrego-lhe o barco e a tripulação. Desdenhando do
incrédulo, Porchey desceu ao seu camarote onde instalou o doente; estimava
muito aquele cozinheiro brasileiro, contratado por ocasião da sua última volta
ao mundo. O homem torcia-se com dores. Na coberta, a maioria dos marinheiros
tinha-se ajoelhado e rezava, Porchey detestava aquele género de manifestações,
característico de uma falta de autodomínio. Quando aprendeu a navegar no
Mediterrâneo, em frente da vivenda que seu pai possuía em Porto Fino, na
Riviera italiana, o visconde Porchester nunca apelara para o Todo-Poderoso. Ou
vogava sozinho, ou se afogava sozinho, sem importunar uma assembleia ocupada em
tarefas mais importantes do que a assistência a um navio em perigo. Deu a
beber, ao cozinheiro, metade de uma garrafa de um excelente uísque, depois
sentou-se ao piano e tocou as Invenções a duas vozes, de João-Sebastião Bach. A
mistura de álcool com aquela música serena acalmava o paciente; se não
sobrevivesse, partiria com derradeiras sensações de qualidade. Antes de morrer,
a mãe de Porchey tinha exigido dele que, de acordo com a educação que recebera
no castelo de Highclere, não visse nem ouvisse nada de ordinário nem de vil. Ao
preparar-se para abrir a barriga de um brasileiro, que devia ter um ou dois
crimes na consciência, o visconde desculpou-se junto da alma da sua genitora. O
doente, com o olhar febril, ousou perguntar: Já... já alguma vez operou? Uma
boa dúzia de vezes, meu amigo, e sem nenhum fracasso. Descontraia-se e tudo
correrá bem. Grande leitor, falando o inglês do Trinity College de Cambridge, o
alemão, o francês, o grego, o latim e compreendendo alguns idiomas raros da
bacia mediterrânica, Porchey tinha lido, de facto, manuais de cirurgia e tinha
ensaiado mentalmente uma operação ao apêndice, pesadelo dos navegadores que partissem
para travessias longas. Fora por isso que se munira de um estojo cirúrgico
digno de um profissional. Feche os olhos e pense numa boa refeição ou numa
mulher bonita. Um sorriso brejeiro dilatou os lábios grossos do cozinheiro.
Porchey aproveitou aquele instante de fraqueza e atingiu-o com uma marretada na
nuca. Algumas rixas nos bares escusos de Cabo Verde e das Antilhas tinham-no
ensinado a aperfeiçoar aquela técnica de anestesia. Operou com mão segura,
pensando na epidemia de sarampo que quase o levara; à guisa de remédio,
borrifavam-no com água gelada a fim de fazer baixar a febre. Em Eton, o
tratamento não era nada melhor; a partir dos primeiros segundos, o visconde
tinha detestado os professores pretensiosos, além de cheios de um saber inútil.
Trabalhava à sua maneira e ao seu ritmo, indiferente às notas e às sanções; era
por isso que o classificavam de preguiçoso, ao passo que desenvolvia um
formidável poder de concentração e uma total independência de pensamento.
Coleccionador de selos, de chávenas de porcelana, de gravuras francesas e de
serpentes em boiões, aborrecia-se profundamente com a leitura de clássicos,
quer se tratasse de Demóstenes, o maçador; de Séneca, o desmancha-prazeres ou
de Cícero, o toleirão; no Trinity College tinha, contudo, encontrado uma
ocupação apaixonante: restaurar as madeiras à sua custa. O director,
escandalizado, tinha-se queixado a seu pai da atitude intolerável de um membro
da velha aristocracia terrena, guardiã dos valores e da tradição, que Porchey
espezinhava com satisfação. Ao jovem nobre, desportista consumado, restava
apenas descobrir o mundo, descobrir a África do Sul, a Austrália e o Japão,
passar de um continente ao outro em busca de um ideal que lhe fugia. Quando a
existência lhe parecia muito aborrecida, mergulhava nos livros de história; a
antiguidade atraía-o, por causa do seu carácter grandioso, tão oposto à
mentalidade pequeno burguesa em que a Europa se enterrava. O Egipto
fascinava-o; não tinha ultrapassado o homem, integrando-o no colossal e construindo
templos à medida do universo? Contudo, tinha evitado a terra dos faraós como se
um receio respeitoso, pouco frequente nele, o impedisse de penetrar em
território desconhecido. O visconde examinou o seu trabalho com satisfação.
Nada mal... nada mal mesmo. Não juro que saia bem, mas o manual estava
correcto; decididamente, nada vale um bom livro. Aproximava-se a hora do
jantar. O visconde mudou de roupa, optando por um casaco branco e umas calças
de flanela cinzenta; não esqueceu o boné de capitão e tornou a subir à coberta
onde a tripulação continuava a rezar no meio da tempestade. Deus é bom observou
o aristocrata. O Afrodite atravessou aquela pequena borrasca e ninguém caiu à
água. Vários marinheiros se precipitaram para junto dele. Calma, senhores. O
nosso cozinheiro está agora livre do seu incómodo apêndice; provavelmente, não
estará em estado de preparar as refeições e teremos de nos desembaraçar como
pudermos até à próxima escala. Que este incidente não os impeça de voltarem aos
seus postos. Ao leme do iate, o herdeiro dos Carnarvon tinha uma postura
distinta. Com a fronte alta e larga, coroada por uma cabeleira quase ruiva, o
nariz de boa raça, o bigode cortado na perfeição, o queixo bem marcado, tinha o
rosto de um conquistador, partindo para o infinito. Apenas Porchey sabia que a
imagem enganava; teria, de boa vontade, delapidado uma parte da sua herança
para dar um sentido à sua vida. A inteligência, a cultura, a fortuna, a
possibilidade de fazer o que lhe apetecia, como lhe apetecia... nada disso lhe
destruía o sentimento de ser vazio e inútil. O grego berrou. O cozinheiro está
vivo! Eu vi, abriu os olhos! O visconde encolheu os ombros. Eu só tenho uma
palavra, meu caro. Não tinha prometido salvá-lo?» In Christian Jacq, L’Affaire
Toutankhamon, O Caso Tutankhamon, tradução de Maria Carlota Guerra, Bertrand
Editora, 1998, ISBN 972-250-750-8.
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