A
sua última duquesa. Toscânia 1559
«(…) Uma moça de cozinha, com uma
mão enrolada numa serapilheira, fez um esgar de dor quando a água a ferver do panelão
que tentara retirar do lume lhe caiu em cachão sobre o pulso. A serapilheira de
que se libertara com um movimento rápido caíra sobre as labaredas e
incendiara-se, emitindo um brilho intenso que lhe iluminava a cara distorcida.
Poucas pessoas haviam reparado no que acontecera, mas os três cozinheiros haviam-se
virado ao mesmo tempo e olhavam, embasbacados, para a rapariga, com um ar
chocado. Um tinha na mão uma concha a pingar; umas gotas de sopa caíram ao
chão, aos pés dele. Lucrécia ficou petrificada. E depois o ruído voltou ao
normal e o grito ficou reduzido a uma lamúria ofegante; a rapariga recuou, a
cambalear, agitando a mão queimada e afastando com a outra as pesadas saias da
serapilheira em chamas. Acometida de um pânico súbito perante aquele marasmo,
Lucrécia correu para a rapariga. Depressa! Despacha-te! Tens de mergulhar a mão
em água fria! Lucrécia pegou-lhe na mão incólume, mas a rapariga deu um grito
surdo, tentando soltar-se. No entanto, Lucrécia não a largou. Não! Vem comigo...,
tens de vir. Vanni, onde há água? Giovanni mantinha-se, ansioso, à porta.
Lucrécia repetiu a pergunta: onde? Onde havemos de ir, Vanni? Ao poço, lá fora?
Não..., é muito longe. E depois Lucrécia teve uma ideia, embora as entranhas se
lhe revolvessem ao pensar nisso. Puxou a rapariga pelo braço, atravessou a
cozinha e embrenhou-se nas sombras do outro extremo. Anda, ordenou. Por aqui.
Pararam em frente das duas barricas. Lucrécia sentiu um nó de repulsa na
garganta ao ver o emaranhado escorregadio a contorcer-se abaixo da superfície
da água. Enfia o teu braço aqui. Elas não te fazem mal e a água está fria.
A rapariga encolheu-se, a choramingar,
tentando libertar-se de Lucrécia. Manteve o braço queimado encostado ao peito.
Vou fazer o mesmo, disse Lucrécia e, cerrando os dentes, agarrou no braço
vermelho e inflamado da rapariga pelos dedos, fechou os olhos e mergulhou os
braços de ambas na barrica antes que a companheira tivesse oportunidade de
esquivar-se. A água estava espessa, opaca e viscosa, e as enguias deslizavam à
volta umas das outras em nós sedosos. A manga de Lucrécia cobria-lhe a maior
parte do braço, mas elas colavam-se horrivelmente em torno da sua mão; ela sentiu
o roçar ocasional de uns dentes aguçados, mas nada que a magoasse. Os dedos da
rapariga estavam rígidos e tentava soltar-se da mão de Lucrécia, respirando
pela boca e observando a barrica com os olhos arregalados. Como te sentes
agora?, perguntou Lucrécia. Estavam encostadas uma à outra, tão juntas que ela
sentia o cabelo da rapariga no pescoço. Sorriu, mas não foi retribuída. Pouco
depois, disse: talvez já seja suficiente. Tenho a mão gelada. Vamos ver. Tirou
o braço da barrica e largou a mão da rapariga. A manga de seda cor de ameixa,
ensopada, adquirira um tom castanho-escuro até acima do cotovelo e colava-se a
ela como uma segunda pele, a brilhar com o visco das enguias. Umas pingas grossas
mancharam a saia e Lucrécia inclinou-se para a frente e esticou o braço para o
lado. Com a outra mão, pegou nas rendas do ombro e depois, com um ar enojado,
puxou a manga molhada.
Pegou-lhe com as duas mãos,
afastando-a do corpo, e torceu-a, fazendo cair mais gotas viscosas no chão
poeirento. A moça de cozinha começou a examinar a queimadura. A mancha vermelha
estava mais esbatida e as gotas de água agarravam-se e os pêlos que sobressaíam
na vermelhidão do pulso esguio. Tocou a medo no sítio magoado, com um dedo
trémulo, e em seguida olhou para Lucrécia. Está um bocadinho melhor, disse. Obrigada,
signorina. Não era preciso fazer isto por mim. Lucrécia viu a rapariga a
olhar para o vestido castanho-avermelhado, lindo e coberto de jóias..., agora
sujo de visco de enguia. Viu-a olhar para o braço nu e para a manga amachucada
e molhada que tinha na mão, e perguntou a si própria no que estaria a pensar.
Como a encararia? Como uma jovem aristocrata benevolente e compadecida, disposta
a sacrificar uma parte do seu guarda-roupa sumptuoso para ajudar uma serviçal
em apuros? Como uma rapariga tonta, vestida de duquesa, mas incauta e infantil,
que sujava as suas belas roupas por capricho? Ou, pior ainda, apenas como uma
intrometida que só servia para estorvar?» In Gabrielle Kimm, A sua Última Duquesa, O
que aconteceu a Lucrécia de Médici?, 2010, tradução de Maria Duarte, Planeta
Manuscrito, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-657-328-7.
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