domingo, 3 de janeiro de 2016

O que Aconteceu a Lucrécia de Médici? Gabrielle Kimm. «Pararam em frente das duas barricas. Lucrécia sentiu um nó de repulsa na garganta ao ver o emaranhado escorregadio a contorcer-se abaixo da superfície da água. Enfia o teu braço aqui»

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A sua última duquesa. Toscânia 1559
«(…) Uma moça de cozinha, com uma mão enrolada numa serapilheira, fez um esgar de dor quando a água a ferver do panelão que tentara retirar do lume lhe caiu em cachão sobre o pulso. A serapilheira de que se libertara com um movimento rápido caíra sobre as labaredas e incendiara-se, emitindo um brilho intenso que lhe iluminava a cara distorcida. Poucas pessoas haviam reparado no que acontecera, mas os três cozinheiros haviam-se virado ao mesmo tempo e olhavam, embasbacados, para a rapariga, com um ar chocado. Um tinha na mão uma concha a pingar; umas gotas de sopa caíram ao chão, aos pés dele. Lucrécia ficou petrificada. E depois o ruído voltou ao normal e o grito ficou reduzido a uma lamúria ofegante; a rapariga recuou, a cambalear, agitando a mão queimada e afastando com a outra as pesadas saias da serapilheira em chamas. Acometida de um pânico súbito perante aquele marasmo, Lucrécia correu para a rapariga. Depressa! Despacha-te! Tens de mergulhar a mão em água fria! Lucrécia pegou-lhe na mão incólume, mas a rapariga deu um grito surdo, tentando soltar-se. No entanto, Lucrécia não a largou. Não! Vem comigo..., tens de vir. Vanni, onde há água? Giovanni mantinha-se, ansioso, à porta. Lucrécia repetiu a pergunta: onde? Onde havemos de ir, Vanni? Ao poço, lá fora? Não..., é muito longe. E depois Lucrécia teve uma ideia, embora as entranhas se lhe revolvessem ao pensar nisso. Puxou a rapariga pelo braço, atravessou a cozinha e embrenhou-se nas sombras do outro extremo. Anda, ordenou. Por aqui. Pararam em frente das duas barricas. Lucrécia sentiu um nó de repulsa na garganta ao ver o emaranhado escorregadio a contorcer-se abaixo da superfície da água. Enfia o teu braço aqui. Elas não te fazem mal e a água está fria.
A rapariga encolheu-se, a choramingar, tentando libertar-se de Lucrécia. Manteve o braço queimado encostado ao peito. Vou fazer o mesmo, disse Lucrécia e, cerrando os dentes, agarrou no braço vermelho e inflamado da rapariga pelos dedos, fechou os olhos e mergulhou os braços de ambas na barrica antes que a companheira tivesse oportunidade de esquivar-se. A água estava espessa, opaca e viscosa, e as enguias deslizavam à volta umas das outras em nós sedosos. A manga de Lucrécia cobria-lhe a maior parte do braço, mas elas colavam-se horrivelmente em torno da sua mão; ela sentiu o roçar ocasional de uns dentes aguçados, mas nada que a magoasse. Os dedos da rapariga estavam rígidos e tentava soltar-se da mão de Lucrécia, respirando pela boca e observando a barrica com os olhos arregalados. Como te sentes agora?, perguntou Lucrécia. Estavam encostadas uma à outra, tão juntas que ela sentia o cabelo da rapariga no pescoço. Sorriu, mas não foi retribuída. Pouco depois, disse: talvez já seja suficiente. Tenho a mão gelada. Vamos ver. Tirou o braço da barrica e largou a mão da rapariga. A manga de seda cor de ameixa, ensopada, adquirira um tom castanho-escuro até acima do cotovelo e colava-se a ela como uma segunda pele, a brilhar com o visco das enguias. Umas pingas grossas mancharam a saia e Lucrécia inclinou-se para a frente e esticou o braço para o lado. Com a outra mão, pegou nas rendas do ombro e depois, com um ar enojado, puxou a manga molhada.
Pegou-lhe com as duas mãos, afastando-a do corpo, e torceu-a, fazendo cair mais gotas viscosas no chão poeirento. A moça de cozinha começou a examinar a queimadura. A mancha vermelha estava mais esbatida e as gotas de água agarravam-se e os pêlos que sobressaíam na vermelhidão do pulso esguio. Tocou a medo no sítio magoado, com um dedo trémulo, e em seguida olhou para Lucrécia. Está um bocadinho melhor, disse. Obrigada, signorina. Não era preciso fazer isto por mim. Lucrécia viu a rapariga a olhar para o vestido castanho-avermelhado, lindo e coberto de jóias..., agora sujo de visco de enguia. Viu-a olhar para o braço nu e para a manga amachucada e molhada que tinha na mão, e perguntou a si própria no que estaria a pensar. Como a encararia? Como uma jovem aristocrata benevolente e compadecida, disposta a sacrificar uma parte do seu guarda-roupa sumptuoso para ajudar uma serviçal em apuros? Como uma rapariga tonta, vestida de duquesa, mas incauta e infantil, que sujava as suas belas roupas por capricho? Ou, pior ainda, apenas como uma intrometida que só servia para estorvar?» In Gabrielle Kimm, A sua Última Duquesa, O que aconteceu a Lucrécia de Médici?, 2010, tradução de Maria Duarte, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-657-328-7.

Cortesia de Planeta/JDACT