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«Solidão...
Não creio como os outros crêem, não vivo como os outros vivem, não amo como os
outros amam... Mas morrerei como todos morrem». In Marguerite Yourcenar
«(…)
Patrodo, corando, rechaçou aquele abraço de mulher: Aquiles recuou, deixou que lhe
agarrassem os braços, verteu lágrimas que mais não faziam do que tornar ainda mais
perfeito o seu disfarce de rapariguinha, mas davam a Deidamia uma nova razão
para preferir Patrodo. Olhadelas, sorrisos interceptados como uma correspondência
amorosa, a perturbação do jovem, tabuleta meio naufragada sob essa vaga de
rendas, transformaram a perturbação de Aquiles em ciúmes furiosos. Aquele rapaz
vestido de bronze eclipsava as imagens nocturnas que Deidamia conservava de
Aquiles, da mesma forma que um uniforme primava aos seus olhos de mulher sobre o
pálido brilho de um corpo nu. Aquiles agarrou desajeitadamente um gládio que
largou imediatamente, e serviu-se, para apertar o pescoço de Deidamia, das suas
mãos de rapariga, invejosa do sucesso de uma companheira. Os olhos da mulher
estrangulada saltaram como duas longas lágrimas; os escravos intervieram; as
portas que se fecharam com um barulho de milhares de suspiros abafaram os
últimos estertores de Deidamia: os reis desconcertados reencontraram-se do
outro lado do sobrado. O quarto das Damas encheu-se de uma obscuridade sufocante,
interna, que nada tinha a ver com a noite. Aquiles, de joelhos, ouvia a vida de
Deidamia escapar-se-lhe da garganta, como a água no gargalo demasiado estreito
de uma garrafa. Sentia-se mais separado do que nunca daquela mulher que ele
tinha tentado não apenas possuir mas ser: tornando-se cada vez menos próximo à
medida que estreitava o aperto, o enigma de ser uma morta tinha-se acrescentado
nela ao de ser uma mulher. Apalpava com horror os seus seios, os seus flancos,
os seus cabelos nus. Levantou-se, tacteando as paredes onde já não se abria qualquer
saída, envergonhado por não ter reconhecido nos reis os emissários secretos da
sua própria coragem, certo de ter deixado fugir a sua única oportunidade de ser
um deus. Os astros, a vingança de Misandre, à indignação do pai de Deidamia,
uniram-se para o manter fechado naquele palácio sem fachada para a glória: os
seus mil passos em redor daquele cadáver comporiam a partir de agora a imobilidade
de Aquiles. Umas mãos quase tão frias como as de Deidamia pousaram-se sobre o
seu ombro: estupefacto ouviu Misandre propor-lhe fugir antes de que caísse
sobre ele a cólera daquele pai todo-poderoso. Confiou o punho à mão dessa amiga
fatal, acertou o passo pelo daquela rapariga à vontade nas trevas, sem saber se
Misandre obedecia ao rancor ou a uma gratidão sombria, se tinha como guia uma
mulher que se vingava ou uma mulher que ele tinha vingado. Batentes cediam,
depois voltavam a fechar-se: os ladrilhos gastos baixavam docemente debaixo dos
seus pés, como a curva mole de uma vaga; Aquiles e Misandre continuavam cada
vez mais depressa a sua descida em espiral, como se a sua vertigem fosse uma
gravidade. Misandre contava os degraus, desfiava em voz alta uma espécie de
terço de pedra. uma porta abriu-se finalmente sobre as falésias, os diques, as
escadas do farol: o ar salgado como o sangue e as lágrimas brotou diante do
estranho par atordoado por essa maré de frescura. Com um riso duro, Misandre
deteve o belo ser apanhando as suas saias, já prestes a cair, estendeu-lhe um
espelho onde a aurora lhe permitia encontrar o seu rosto, como se ela não
tivesse consentido em o trazer para o ar livre senão para lhe infligir, num
reflexo mais aterrorizador do que o vazio, a prova nua e crua da sua não
existência de deus. Mas a sua palidez de mármore, os cabelos ondulantes como as
crinas de um capacete, a pintura misturada de choro, que se lhe colava às faces
como o sangue de um ferido, reuniam pelo contrário, neste quadro estreito,
todos os posteriores aspectos de Aquiles, como se aquele estreito pedaço de
vidro tivesse aprisionado o futuro. O belo ser solar arrancou o cinto, desmanchou
a écharpe, quis desembaraçar-se das
musselinas asfixiantes, mas teve medo de se expor mais ao fogo das sentinelas,
se tivesse a imprudência de se deixar ver nu». In Marguerite Yourcenar, Feux,
1935, Éditions Galimard, 1974, Difel, Lisboa, 1995, ISBN 972-29-0315-2.
Cortesia
Difel/JDACT