terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Fogos. 1935. Prosas Líricas. Marguerite Yourcenar. «Confiou o punho à mão dessa amiga fatal, acertou o passo pelo daquela rapariga à vontade nas trevas, sem saber se Misandre obedecia ao rancor ou a uma gratidão sombria»

jdact

«Solidão... Não creio como os outros crêem, não vivo como os outros vivem, não amo como os outros amam... Mas morrerei como todos morrem». In Marguerite Yourcenar

«(…) Patrodo, corando, rechaçou aquele abraço de mulher: Aquiles recuou, deixou que lhe agarrassem os braços, verteu lágrimas que mais não faziam do que tornar ainda mais perfeito o seu disfarce de rapariguinha, mas davam a Deidamia uma nova razão para preferir Patrodo. Olhadelas, sorrisos interceptados como uma correspondência amorosa, a perturbação do jovem, tabuleta meio naufragada sob essa vaga de rendas, transformaram a perturbação de Aquiles em ciúmes furiosos. Aquele rapaz vestido de bronze eclipsava as imagens nocturnas que Deidamia conservava de Aquiles, da mesma forma que um uniforme primava aos seus olhos de mulher sobre o pálido brilho de um corpo nu. Aquiles agarrou desajeitadamente um gládio que largou imediatamente, e serviu-se, para apertar o pescoço de Deidamia, das suas mãos de rapariga, invejosa do sucesso de uma companheira. Os olhos da mulher estrangulada saltaram como duas longas lágrimas; os escravos intervieram; as portas que se fecharam com um barulho de milhares de suspiros abafaram os últimos estertores de Deidamia: os reis desconcertados reencontraram-se do outro lado do sobrado. O quarto das Damas encheu-se de uma obscuridade sufocante, interna, que nada tinha a ver com a noite. Aquiles, de joelhos, ouvia a vida de Deidamia escapar-se-lhe da garganta, como a água no gargalo demasiado estreito de uma garrafa. Sentia-se mais separado do que nunca daquela mulher que ele tinha tentado não apenas possuir mas ser: tornando-se cada vez menos próximo à medida que estreitava o aperto, o enigma de ser uma morta tinha-se acrescentado nela ao de ser uma mulher. Apalpava com horror os seus seios, os seus flancos, os seus cabelos nus. Levantou-se, tacteando as paredes onde já não se abria qualquer saída, envergonhado por não ter reconhecido nos reis os emissários secretos da sua própria coragem, certo de ter deixado fugir a sua única oportunidade de ser um deus. Os astros, a vingança de Misandre, à indignação do pai de Deidamia, uniram-se para o manter fechado naquele palácio sem fachada para a glória: os seus mil passos em redor daquele cadáver comporiam a partir de agora a imobilidade de Aquiles. Umas mãos quase tão frias como as de Deidamia pousaram-se sobre o seu ombro: estupefacto ouviu Misandre propor-lhe fugir antes de que caísse sobre ele a cólera daquele pai todo-poderoso. Confiou o punho à mão dessa amiga fatal, acertou o passo pelo daquela rapariga à vontade nas trevas, sem saber se Misandre obedecia ao rancor ou a uma gratidão sombria, se tinha como guia uma mulher que se vingava ou uma mulher que ele tinha vingado. Batentes cediam, depois voltavam a fechar-se: os ladrilhos gastos baixavam docemente debaixo dos seus pés, como a curva mole de uma vaga; Aquiles e Misandre continuavam cada vez mais depressa a sua descida em espiral, como se a sua vertigem fosse uma gravidade. Misandre contava os degraus, desfiava em voz alta uma espécie de terço de pedra. uma porta abriu-se finalmente sobre as falésias, os diques, as escadas do farol: o ar salgado como o sangue e as lágrimas brotou diante do estranho par atordoado por essa maré de frescura. Com um riso duro, Misandre deteve o belo ser apanhando as suas saias, já prestes a cair, estendeu-lhe um espelho onde a aurora lhe permitia encontrar o seu rosto, como se ela não tivesse consentido em o trazer para o ar livre senão para lhe infligir, num reflexo mais aterrorizador do que o vazio, a prova nua e crua da sua não existência de deus. Mas a sua palidez de mármore, os cabelos ondulantes como as crinas de um capacete, a pintura misturada de choro, que se lhe colava às faces como o sangue de um ferido, reuniam pelo contrário, neste quadro estreito, todos os posteriores aspectos de Aquiles, como se aquele estreito pedaço de vidro tivesse aprisionado o futuro. O belo ser solar arrancou o cinto, desmanchou a écharpe, quis desembaraçar-se das musselinas asfixiantes, mas teve medo de se expor mais ao fogo das sentinelas, se tivesse a imprudência de se deixar ver nu». In Marguerite Yourcenar, Feux, 1935, Éditions Galimard, 1974, Difel, Lisboa, 1995, ISBN 972-29-0315-2.

Cortesia Difel/JDACT