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«(…) A morte inesperada de Trifeno suscitou comentários desencontrados:
uns entenderam que era vindicta divina contra os excessos de boa vida que ele
ia levando; outros disseram invejá-lo, por um trespasse tão fulminante e isento
de dores, nítida intervenção de Apolo. De um modo geral, todos lamentaram o
desaparecimento de um magistrado que provinha de boas famílias, era risonho,
dado a despesas, amigo do governador e que ninguém odiava particularmente. O
decesso ocorreu durante uma leitura pública em casa de um decênviro chamado
Ápito. Como era de norma, um dos duúnviros presidia. Habitualmente, calhava-me
essa honra, ou, para ser mais sincero, essa mortificação. Naquele dia, porém,
eu havia preferido receber um certo Airhan, recém-chegado a Tarcisis, que,
muito à puridade, e com apelos de urgência, me mandara pedir alvíssaras por
notícias que trazia do Sul. Repoltreou-se então Trifeno, em meu lugar, no cadeirão
oficial que, sobre o estrado, era reservado ao duúnviro.
Segundo me contaram, a sessão decorreu com absoluta e morna
normalidade. O primeiro orador anunciou que procederia à leitura de uma variação
em torno da célebre questão que Demóstenes propusera em Atenas sobre a venda do
burro ou da sombra do burro, e que tem sido glosada com minúcia por todos os
jurisconsultos. Tudo se acomodou para sofrer a questão do burro, a que se
seguiriam um diálogo sobre a munificência dos Césares e um poema heróico sobre
a queda de Numância. Muito se bocejou e dormitou naquela audiência e, por isso,
ninguém estranhou que a cabeça de Trifeno resvalasse e pendesse bandeada, mal
sustida pelo espaldar da cadeira, nem que os seus pés, muito estendidos,
tivessem feito derivar o tamborete para longe do assento. Só quando, horas
depois, a sessão chegou ao fim e quiseram acordar Trifeno, primeiro com blandícia,
após com violência, chegaram à conclusão de que a morte, como diziam, se tinha
apiedado dele e o tinha poupado ao dilúvio de palavras e gestos que ali se produzira.
Ainda assim, o último orador, Proserpino, foi acusado, por uma
maledicência risonha, de proferir apóstrofes mortais para ouvidos curuis e
alguns jovens estroinas inventaram-lhe até uma alcunha formada com um
neologismo grego que significava: o do fatídico verbo. Não me dá para
sorrir quando relato estes acontecimentos, com a sua forma burlesca, nem
pretendo divertir quem quer que seja. Quero apenas acentuar a despreocupação um
tanto irreverente, de algum modo tola, e, em absoluto, ímpia, que então
campeava em Tarcisis. Os mais notáveis nada tomavam a sério; a plebe não tomava
a sério os notáveis. E nesta leviana irresponsabilidade, todos se julgavam
protegidos por uma grande redoma, diáfana mas sólida, velada por benévolos
deuses guardiões. A ninguém ocorria que a divindade do Imperador apenas fosse
válida nos templos, que a autoridade do Senado e do Povo fosse escassamente
garantida pelo acampamento da VII Legião Gémina, a novecentas milhas de
distância e que, adentro das próprias muralhas, a corrupção da cizânia já
lavrasse, depois que por elas entrou um certo homem de fraca aparência, mas de palavras
aladas.
Foi Airhan quem me chamou a atenção para ele, de passagem, por forma
vaga e como distraída: parece que anda por aí um estrangeiro, que diz ser mercador
de nozes... Nome? Mílquion ou Mélquion, não sei bem... Logo mudou de assunto,
sem acrescentar mais pormenores. Também não dei grande importância ao
peregrino. O que me preocupava na altura, razão da minha convocatória a Airhan,
eram os rumores de perturbações e correrias do outro lado do Estreito. Ao que
parecia, pelas meias palavras dele, a situação aconselhava cautelas. Este
Airhan era meu informador, informador dos meus antecessores, e de mais não sei
quem. Nunca gostei dele, situação que lhe convinha perfeitamente, desde que o
remunerasse e não caísse em curiosidades minuciosas sobre aquilo a que se pode
chamar, simplificando, a sua maneira de estar na vida. Acostumado a que o
detestassem, Airhan não esperava outro sentimento dos outros, ainda que fossem relativamente
poderosos, como eu era então.
Cheirava asperamente a torpes couros curtidos e a ani-mais de estábulo.
Mal ele entrava, a minha estância era logo impregnada daquele fedor que,
persistentemente, continuava a contaminar os mais ínfimos e descomprometidos
objectos, mesmo após a sua abalada. Durante muito tempo, a própria cera das
tabuinhas denunciava o contacto com este homem». In Mário de Carvalho, Um Deus
Passeando pela Brisa da Tarde, Editorial Caminho, Grande Prémio APE 1995,
Prémio Fernando Namora 1996, Prémio Pégaso de Literatura 1996, Lisboa, 1994,
ISBN 972-21-0974-X.
Cortesia de Caminho/JDACT