terça-feira, 1 de março de 2016

A Ala dos Namorados. António Campos Júnior. «Pela noite adiante chegara o batel em que vinha o comerciante do Porto, João Ramalho, com a notícia de ter atracado em Cascais a esquadra de socorro. O Mestre combinou então com o Ramalho o plano a seguir»

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Dor que enlouquece
«(…) Tinha sido o tribuno e o comandante da populaça, para que a Nação se defendesse das pretensões de el-rei de Castela e não lhe deixasse levar a coroa do monarca falecido, na herança da infanta portuguesa dona Beatriz, esposa do rei invasor, mais a bandeira e a história da terra portuguesa. E o caso foi que, sem a intervenção daquele mestre tanoeiro, talvez a Nação não tivesse por chefe o jovem Mestre de Avis, e tivesse esmorecido na defesa da sua independência. Entre os homens de acção preponderante que apoiaram o bastardo de el-rei Pedro I e da plebeia dona Teresa Lourenço à subida do trono, três havia de incontestável grandeza, Nuno Álvares Pereira, fidalgo e guerreiro juvenil; Álvaro Pais, o velho chanceler dos tempos de el-rei Fernando, e aquele valente mesteiral (mestre artesão), que se chamava Afonso Eanes Penedo. Ei-lo, aí vem! anunciou outra voz. E com ele aquela alma boa do povo. O nosso querido velhinho, Álvaro Pais. Certo se irá recolher o Mestre aos paços de Apar S. Martinho. Viva o Mestre!, gritou uma multidão próxima das Portas de Ferro. E pouco depois, adiante de todos, mulheres e carpinteiros da Ribeira com archotes acesos. Sem nenhuma ostentação de poder, singelamente, quase ombro a ombro com o povo que o adorava, o Mestre de Avis subia lentamente com Álvaro Pais, muito abordoado ao seu bastão, arrastando por ali acima, penosamente, com as suas pernas trôpegas. Ao lado dele, na esquerda, um legista que, há dois anos, viera da Universidade de Bolonha onde se formara em leis, o doutor João das Regras.
Um pouco atrás, acotovelados pela multidão dos maltrapilhos descalços, dois pajens com tochas acesas, e depois o comandante dos besteiros. Oito homens de armas por escolta e mais ninguém naquele cortejo do Defensor do Reino, título dado pelos cidadãos de Lisboa, o Mestre da Ordem de Avis; um infante bastardo pelo pai, um homem do povo pela mãe. Havia explicação para o cortejo ser pequeno. Ainda nessa tarde o Mestre recebera avisos de certos movimentos suspeitos da esquadra castelhana e fora logo para as Portas do Mar, sem nenhuma comitiva, para observar ele próprio qual seria o intento do almirante de Castela. E por lá se demorara pela noite dentro, de atalaia, sem ter podido perceber o intento daquela evolução dos navios sitiantes. Tomou precauções, mandou um aviso confidencial às torres e às quadrilhas que guardavam as portas para se manterem em dobrada vigilância, mas não quis dar alarme à pobre cidade, já tão atribulada de provações. Nas trincheiras da praia dirigiu ele próprio, sem alarmes, as precauções de sobreaviso e, como em outras ocasiões, teve a auxiliá-lo dedicadamente o arcebispo de Braga, Lourenço, com o seu estado-maior de cônegos e a sua hoste de frades e clérigos seculares. Os trabalhos e os sacrifícios eram para todos.
O arcebispo, um homem intrépido, não admitia isenções de privilégio para ninguém naquela conjuntura angustiosa. Para ele era também serviço de Deus defender a Nação à mão armada, e a sua hoste de tonsurados não era das menos fervorosas nem das menos destemidas na defesa das trincheiras e no arranque das sortidas. Fora ele até o principal organizador na defesa do lado do rio, passando indiferentemente da sua tarefa de dirigente aos mais rudes trabalhos de construção, para estímulo da peonagem e dos seus clérigos. Pela noite adiante chegara o batel em que vinha o comerciante do Porto, João Ramalho, com a notícia de ter atracado em Cascais a esquadra de socorro. O Mestre combinou então com o Ramalho o plano a seguir, não só quanto à entrada dos navios, mas também a respeito do apoio que poderiam dar-lhe os defensores da cidade. Assente o que devia fazer-se para que a empresa, realmente grave, tivesse bom êxito, Ramalho voltou para Cascais com o mesmo risco e destemor, e o Mestre regressava agora ao paço para ali discutir com os seus cavalheiros e caudilhos do povo, entre os quais tinham lugar proeminente os homens de ofícios da Casa dos Vinte e Quatro do povo, com todas as minúcias e disposições da parte do plano que pertencia à cidade. E era neste assunto gravíssimo que o Mestre vinha a conversar com aquele velho alquebrado, que fora o cérebro dirigente da revolução e trazia em si, no seu arcabouço de septuagenário, uma das maiores almas de Portugal». In António Campos Júnior, A Ala dos Namorados, 1905, Luso Livros, Uma nova forma de ler, Formato digital, 2013.

Cortesia de LusoLivros/JDACT