Cortesia
de wikipedia e jdact
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E tudo o que observo hoje à minha volta, esse planeta enfezado, soturno,
obscurecido, este desfraldar de ódios, essa universal frialdade que tudo
envolve como uma nova era glaciar..., não é o fruto de uma genial solução?
Contudo o fim do milénio tinha sido grandioso. Uma embriaguês nobre,
contagiosa, devastadora, messiânica. Nós acreditávamos todos que a Graça ia
tocar pouco a pouco a Terra inteira, que todas as nações poderiam em breve
viver na paz, na liberdade, na abundância. Doravante, a História não seria mais
escrita pelos generais, pelos ideólogos, pelos déspotas, mas pelos astrofísicos
e pelos biólogos. A humanidade saciada só teria como heróis os inventores e os
que a divertiam. Eu próprio nutri
durante muito tempo essa esperança. Como todos os da minha geração, eu teria
encolhido os ombros se me tivessem predito que tantos progressos morais e
técnicos se verificariam reversíveis que tantas vias de comunicação voltariam a
fechar-se, que tantos muros poderiam ressurgir, tudo isso por culpa de um mal
omnipresente e contudo insuspeitado. Porque odioso logro do destino o nosso
sonho se desmantelou? Como chegamos a isso? Por que fui obrigado a abandonar a
cidade e toda a vida civil? O que eu queria contar aqui, o mais fielmente, o
mais escrupulosamente possível, é a lenta eclosão do flagelo que nos envolve
depois dos primeiros anos do novo século, arrastando-nos nessa regressão sem
precedente, parece-me, tanto pela sua amplitude como pela sua natureza. Apesar
do terror ambiente, esforçar-me-ei por escrever até ao fim com serenidade.
Neste instante, sinto-me ao abrigo do meu antro de alta montanha, e a minha mão
não treme nada por cima deste velho repertório ainda virgem a que vou confiar
os meus fragmentos de verdade. Encontro até, na evocação de certas imagens do
passado, uma alegria em que a minha pessoa se compraz, a ponto de esquecer por
momentos o drama que presumidamente vou relatar. Não é uma das virtudes da
escrita deitar horizontalmente na mesma folha horizontal o fútil e o
excepcional? Tudo readquire num livro a espessura negligenciável da tinta
achatada. Mas basta de preâmbulos! Eu tinha prometido a mim mesmo cingir-me aos
factos.
Foi
no Cairo que tudo começou, numa estudiosa semana de Fevereiro, há quarenta e
quatro anos, até apontei o dia e a hora. Mas de que serve fazer malabarismos
com as datas, basta dizer que era na vizinhança do ano com três zeros. Eu
escrevi começou? Começou para mim, queria eu dizer; os historiadores
fazem remontar a génese do drama muito mais atrás no tempo. Mas eu coloco-me
aqui no estrito ponto de vista de testemunha: para mim a coisa nasceu quando a
encontrei pela primeira vez. Esta entrada na matéria pode deixar crer que eu
pertenço à raça dos grandes viajantes, um encontro nas margens do Nilo, uma
escapadela até ao Amazonas ou ao Brahmaputra... Muito pelo contrário. Eu passei
a maior parte da minha vida à minha mesa de trabalho, viajei sobretudo entre o
meu jardim e o meu laboratório. O que não me causa, de resto, a mínima pena; de
cada vez que me colava ao olhinho do microscópio era para mim o embarque. E
quando me acontecia tomar o avião deveras, era também, quase sempre, com a
finalidade de observar um êxito de mais de perto. Essa viagem ao Egipto, dizia
respeito ao escaravelho. Mas a óptica não me era habitual. Em geral, quando
participava em qualquer seminário, tratava-se apenas de agricultura ou de
epidemia. Convidados de honra, a filoxera ou a Propillia japonica, o anófeles
ou a mosca tsé-tsé, para as enfadonhas variações sobre um tema velho como a
pré-história: os bichos nossos inimigos. O encontro do Cairo prometia
ser diferente. A carta com o convite falava, vou citar, de apreciar o lugar
do escaravelho na civilização do Egito antigo: arte, religião, mitologia,
lendas.
Não
dou qualquer novidade a ninguém, presumo, recordando que na época faraónica se
venerava o escaravelho como uma divindade. Em particular a espécie conhecida,
justamente, sob o nome de escaravelho sagrado, Scarabeus sacer, mas mais geralmente todas as variedades desse
digno êxito. Acreditavam-no dotado de virtudes mágicas, e depositário dos
grandes mistérios da vida. Ao longo de todos os meus anos de estudo, cada
professor o tinha repetido à sua maneira, e logo que obtive o meu próprio
laboratório no Museu de História Natural, os meus alunos tiveram direito,
também eles, ao estribilho anual, ditirâmbico e apaixonado, sobre o
escaravelho. Imagine-se o que pode representar para um especialista de
coleópteros saber que Ramsés II se terá prosternado diante de um desses
animalejos devoradores de bosta de boi. O culto do escaravelho espalhou-se até
bem para além das fronteiras do Egipto, alcançando a Grécia, a Fenícia, a
Mesopotâmia; legionários romanos tinham adquirido o hábito de gravar uma
silhueta de escaravelho no punho dos seus gládios; e os Etruscos cinzelavam
delicadas jóias de ametista com a sua efígie. Para a minha disciplina,
repito-o, o escaravelho é uma glória, um título de nobreza. Ia dizer um
venerável antepassado, e, muito naturalmente, fiz algumas leituras, algumas
investigações a seu respeito, não podia metê-lo no mesmo saco que as baratas do
celeiro, os insectos não nasceram todos na mesma bosta. Contudo, por mais
aprofundadas que pudessem ter sido as minhas investigações, senti-me
imediatamente muito pouco à vontade no seminário do Cairo. Entre os vinte e
cinco participantes vindos de oito países, eu era o único incapaz de ler os
hieróglifos, incapaz de enumerar os Tutmés ou os Amenófis, era o único que
ignorava além disso, o copta sacidico e o copta subakmimico, que ninguém se
lembre de me perguntar o que é, nunca mais voltei a ouvir essa palavra, mas
creio tê-la transcrito correctamente». In Amin Maalouf, O Século Primeiro depois de
Beatriz, 1992, tradução de Daniel Gonçalves, Difel (Difusão Editorial), 2008,
ISBN 978-972-290-919-8.
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