terça-feira, 1 de março de 2016

O Estranho Caso de Sebastião Moncada. João Pedro Marques. «Desafiava-o, desobedecia-lhe, exigia-lhe arrecadas e fios de ouro, que ele, obediente e manso, dava, enganava-o com o moço de estrebaria e com o azeiteiro de Vilar…»

jdact

O mistério da Foz
«As portadas da janela chiaram nos gonzos e fecharam-se com grande estrondo, espantando os pombos. O estalajadeiro estremeceu com a brutalidade da pancada, parou de regar o canteiro das begónias e, olhando para cima, gritou, irritado: devagar, Maria! Não é pra partir, mulher! A criada não lhe respondeu. Aquela Maria tinha um feitio difícil, um geniozinho, como dizia a cozinheira, e nos últimos dias uma zanga com a irmã que vivia na Ribeira pusera-a trombuda, de maus modos e poucas falas. Era nesse estado de espírito que andava agora pelo primeiro piso da estalagem a fechar as portadas, uma das suas obrigações diárias. E, pelo que se via, embirrara com aquelas grandes janelas viradas a poente que tinham estado languidamente escancaradas a beber o ar do mar e a luz majestosa do entardecer enquanto ela se revolvia num caldo negro de ressentimentos e maus fígados. Com jeito, mulher, com jeito..., ralhou o estalajadeiro. E depois, remoendo várias pragas para si próprio, acrescentou em voz baixa: estúpida! Não lhe custou a ganhar...
Ia para quinze anos que Sátiro José Costa era dono daquela estalagem e nunca se encolhera diante das criadas. Dizia-lhes o que tinha a dizer e quando não estava satisfeito punha-as na rua. Com Maria, porém, era diferente: refreava-se e aturava-lhe as venetas pelos momentos de luxúria que ela lhe consentia. A troco do acesso à sua alcova e aos seus encantos, aquela Maria tomara liberdades, medira-lhe as fraquezas e fazia dele o que muito bem queria. Desafiava-o, desobedecia-lhe, exigia-lhe arrecadas e fios de ouro, que ele, obediente e manso, dava, enganava-o com o moço de estrebaria e com o azeiteiro de Vilar, e tudo isso ele suportava com estoicismo mudo, na mira do calor do seu seio e da visão esplêndida daquele corpo flexível e jovem, nu sobre a cama. As carnezinhas lascivas de Maria tinham-no convertido num mártir da paixão. Mas se, como mártir, aceitava com resignação ser desautorizado e, até, enganado, como patrão não suportava que ela lhe maltratasse o material. Aquelas janelas não iam lá com gestos bruscos. Exigiam cuidado e uma certa reverência, pois nelas se haviam debruçado alguns dos nomes mais ilustres e respeitáveis da história recente do reino. Ali tinham estado o muito chorado marquês de Loulé, o Manuel Fernandes Tomás, que Deus tinha, e, até, o marquês de Palmela, que pernoitara no quarto maior, poucos dias antes da fuga no Belfast (navio que na madrugada de 3 de Julho de 1828, após o fracasso da insurreição contra o rei Miguel, conduziu os chefes liberais para Inglaterra, deixando o exército entregue à sua sorte). Isso, claro está, nos bons velhos tempos, quando a estalagem formigava de clientes famosos e quando a palavra Costa ainda era sinónimo da melhor casa de hóspedes de São João da Foz e, talvez mesmo, de todo o Baixo Douro. Agora, infelizmente, os tempos eram outros, tão decaídos que davam pena. Desde que o rei Miguel subira ao trono, os clientes de boa posição rareavam, talvez por não quererem ser vistos na casa de um homem tido por liberal. Já lá iam quatro anos de penúria e o correspondente decréscimo dos ganhos tornava impossível obstar à degradação do edifício. Havia rombos no telhado, muitas madeiras lascadas e apodrecidas, e a frontaria estava coberta de salitre e de musgo. As paredes exteriores enchiam-se de fendas, a sua cor amarela ia morrendo a cada novo dia e as letras pintadas por cima da porta principal já quase não se liam, esvaídas numa tinta gasta e na sujidade parda daquele ar de princípios de Junho. Nas últimas semanas não caíra uma única gota de chuva no Porto e qualquer aragem mais forte levantava nuvens de poeira acastanhada que engoliam e enevoavam tudo.
O estalajadeiro suspirou, desalentado. Assim que tivesse ânimo e vagar, teria de pintar de novo o nome Costa, e desta vez em vermelho-vivo e letras de côvado. Talvez assim fosse visível da estrada, por entre o pó, e ajudasse a devolver à estalagem o seu antigo esplendor. Lançando um olhar dorido e nostálgico à vereda deserta que subia da estrada até ao seu estabelecimento, Sátiro Costa passou pela arrecadação para guardar o regador e o ancinho que estivera a usar, e, após ter tirado o avental esverdeado e sacudido o pó dos sapatos, entrou cabisbaixo no vestíbulo da estalagem. Era um homem de baixa estatura, ombros largos e andar desequilibrado pois os pés, muito pequenos, sustinham mal o peso do seu corpo anafado. Os seus olhos e gestos, dantes ágeis e expressivos, tinham perdido vivacidade e os seus abundantes caracóis castanhos iam embranquecendo com as agruras dos tempos. Ainda assim, a barriguinha redonda e os lábios grossos que, sob a barba rala, mexiam incessantemente como se beijassem o ar, vinham pôr um tom risonho de bacorinho rosado naquela figura pacata e, mesmo que o não fosse, Sátiro parecia um homem feliz. Foi, por isso, com um paradoxal ar de felicidade que, ao cruzar-se com a mulher, que levava, nos braços, um molho de roupa para engomar, o estalajadeiro lamentou a continuação da má sorte: mais um dia sossegado, Adélia. Ânimo, homem, atirou-lhe ela. Ânimo! Não há mal que sempre dure. Com a ajuda de Deus havemos de nos arranjar». In João Pedro Marques, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.


Cortesia de PEditora/JDACT