sexta-feira, 18 de março de 2016

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «A respiração da pequenita era regular. Estaria a dormir? Os relâmpagos não nos conseguem acertar? Afinal ainda não adormecera»

jdact

«(…) Voltou a guardar a garrafa bojuda e de seguida também ele, assim encharcado como estava, recolheu-se ao beliche. As ondas embatiam com força no casco do navio, bem próximo da sua cabeça. Baloiçava para cima e para baixo, a tempestade embalava-o. A alguém como ele, Antero sabia que Deus, ao rogar-lhe o regresso à tranquilidade, nem sequer daria ouvidos. De resto, ele nem sequer se fiava no auxílio de Deus. Era um maldito de um contrabandista, um homem sem fé. Se fosse parar ao fundo do mar no interior daquele barco, aguardavam-no depois os austeros anjos e o Juízo Final. Qual serpente, o medo carcomia-lhe as entranhas. Sentia tonturas e estremecia de frio e cansaço. Lamento..., sussurrou, pensando no seu herbário, no livro de apontamentos com os desenhos de escaravelhos, nos serões que passara no observatório astronómico dos Jesuítas em Lisboa. Em tempos dediquei-me à investigação, meu Deus. Era um daqueles que andavam em busca dos Teus vestígios. Por favor, não Te esqueças disso.
Dalila aproximou da sua cara o lenço de rosto de Antero e inalou o odor deste, tomando-o como se de um remédio se tratasse: a água do mar e a acerba fragrância masculina. Se Leonor se desse conta de que ela lhe tinha roubado o lenço, iria enfurecer-se. E Antero? Se soubesse que o seu lenço de rosto era cheirado por outra que não aquela a quem ele o dera, como iria reagir? Talvez ele também a pudesse amar a ela, Dalila. Afinal, Leonor e ela eram irmãs gémeas. Era idêntico o aspecto dos seus rostos e dos seus corpos, ainda que o carácter de cada uma delas fosse bem diferente. A chama da vela combatia a escuridão do quarto. No exterior, a chuva fustigava as portadas. Dalila afagava suavemente com a mão por cima da coberta. A respiração da pequenita era regular. Estaria a dormir? Os relâmpagos não nos conseguem acertar? Afinal ainda não adormecera. Já te expliquei isso, querida, sussurrou Dalila. Aqui estamos a salvo. Como se chama isso? O que nos protege? Pára-raios. Dalila acariciava o tufo de cabelo ruivo da pequenina. O cabelo desta cintilava à luz da vela. No meio da enorme cama, parecia carecer de protecção. Dalila acrescentou: foi um senhor inteligente que o descobriu, e agora já nada de mal poderá acontecer-nos. Repara só como está aconchegado aqui dentro, enquanto lá fora faz aquele temporal! Temos a vela, está quente, e estamos aqui a seco. Ouviu-se o estrondo de um trovão. Tacteando, a mão da pequenita procurou a de Dalila. Ficas aqui? Dalila pegou na mão da criança e acariciou-a. Fico. Não tenhas medo.
Tinha pena da menina. Fora concebida por um qualquer nobre libidinoso e uma criada e depois deixada a crescer algures, bem longe. Seria de certeza apenas em troca de uma soma exorbitante que o seu pai sustentava a menina, e incumbira expressamente a austera cozinheira de se ocupar da pequenina. Não podia saber que a sua filha estava aqui em baixo, pois trataria logo de dizer: não há nada de que uma rapariga nobre possa andar à procura aqui nos aposentos da criadagem, Dalila! A casa encontrava-se dividida, nos andares superiores estava o céu, era aí que eles habitavam, e lá em baixo ficava o inferno, onde vivia a criança ilegítima que ninguém queria. E, no entanto, a menina pertencia presumivelmente também à nobreza! Uma criança nobre que crescia nos aposentos da criadagem, entre tachos, caixotes do lixo e a gamela dos cães. O cão também não conseguia adormecer. Olhava em silêncio na direcção da janela, para lá da qual os relâmpagos iluminavam a noite. Ainda bem que ele fazia companhia à pequenina de noite e de dia. Era como se lhe substituísse o pai e a mãe. Por vezes, parecia a Dalila que aquele inteligente animal o sabia. Virou-se para o lado e voltou a cheirar o lenço de rosto de Antero. Pelo seu nariz absorvia o odor a aventuras. Aquele Virou-se para o lado e voltou a cheirar o lenço de rosto de Antero. Pelo seu nariz absorvia o odor a aventuras. Aquele homem era mesmo livre. Percorria alegremente os confins do mundo. Que tens tu aí?, perguntou a pequenita. Dalila estremeceu. É só um lenço, respondeu, escondendo-o junto do peito». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

Cortesia Cletras/JDACT