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Verão de 1899
«(…)
Na nossa família corriam muitas versões da história de Yusuf Pasha algumas das
quais bastante hostis em relação ao nosso antepassado, mas estas eram quase um
exclusivo daqueles tios-avós e tias-avós cujo lado da família fora deserdado a
favor do meu. Todos sabíamos que Yusuf Pasha compunha poemas eróticos e que,
com a excepção de um punhado de versos que passara oralmente de uma geração
para a outra, fora tudo queimado. Por que razão fora a poesia destruída? E por
quem? Antes do exílio, costumava colocar estas perguntas ao meu pai pelo menos
uma vez no ano. Ele esboçava um sorriso e ignorava-me por completo. Julgava que
talvez o meu pai se sentisse embaraçado por discutir semelhante assunto com os
filhos, sobretudo com a filha. Porém, agora, não foi assim que as coisas se passaram.
Talvez fosse o facto de Orhan estar presente. Esta era a primeira vez que ele
via Orhan. Talvez o meu pai quisesse passar a história para um elemento
masculino da geração mais nova. Ou talvez ele se estivesse apenas a sentir
descontraído. Só mais tarde compreendi que ele pressentia o desastre que estava
prestes a abater-se sobre a sua pessoa.
A
tarde estava quase a chegar ao fim e o calor continuava a fazer-se sentir. O
sol seguia o seu caminho rumo a Ocidente. Os seus raios eram agora de um
vermelho-dourado, o que envolvia todos os recantos do jardim numa onda de
magia. Nesta velha casa, nada viera alterar a rotina estival. As velhas
magnólias com as suas folhas largas brilhavam aos últimos raios de sol. O meu
pai acabara e acordar depois de uma sesta refrescante. O seu rosto mostrava-se
descontraído. À medida que envelhecia o sono produzia nele os efeitos de um
elixir. As rugas que lhe sulcavam a testa pareciam evaporar-se. Ao olhar para
ele, compreendi o quanto sentira a sua falta durante estes últimos nove anos.
Beijei-lhe as mãos e repeti a pergunta. Ele sorriu, mas não respondeu
imediatamente. Aguardou. Eu também decidi esperar, recordando as rotinas
características das tardes dos meses estivais. Sem pronunciar uma palavra, o
meu pai pegou na mão de Orhan e puxou o rapazinho para junto de si. De seguida,
começou a afagar-lhe a cabeça. Orhan conhecia o avô a partir de uma fotografia
pouco nítida que eu levara comigo e colocara junto à minha carna. A medida que
ele crescia, fui-lhe contando histórias da minha infância e da velha casa
sobranceira ao mar.
Foi
então que apareceu o velho Petrossian, o mordomo da casa, que estava com a
nossa família desde o dia em que nascera. Um rapazinho, não muito mais velho do
que Orhan, seguia-o transportando uma bandeja. O velho Petrossian serviu um
café ao meu pai, exactamente como o vinha fazendo há trinta anos, até mesmo
mais, e, provavelmente, tal como o seu pai servira o meu avô durante todos os
anos em que estivera com ele. Os seus hábitos não haviam conhecido qualquer
alteração. Tal como era seu costume, ignorou-me completamente na presença do
meu pai. Quando eu era uma garotinha, isto costumava aborrecer-me imenso.
Deitava-lhe a língua de fora ou esboçava um qualquer gesto mal-educado, mas
nada do que eu fizesse conseguia alterar o padrão do seu comportamento. à
medida que fui crescendo, aprendi a ignorar a sua presença. Ele acabou por se
tornar invisível a meus olhos. Seria imaginação minha ou ele hoje esboçara um sorriso?
Sim, fizera-o, mas como forma de reconhecer a presença de Orhan. Um outro
elemento do sexo masculino entrara naquela casa e Petrossian sentia-se
satisfeito». In Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000, tradução de Lucília Rodrigues,
Publicações Europa América, Contemporânea, 2002/2003, ISBN 972-105-125-X.
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