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Recado
«Ouve-me
que
o dia te seja limpo e
a
cada esquina de luz possas recolher
alimento
suficiente para a tua morte
vai
até onde ninguém te possa falar
ou
reconhecer, vai por esse campo
de
crateras extintas, vai por esse porta
de
água tão vasta quanto a noite
deixa
a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as
loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se
na vertigem do voo, deixa
que
o outono traga os pássaros e as abelhas
para
pernoitarem na doçura
do
teu breve coração, ouve-me
que
o dia te seja limpo
e
para lá da pele constrói o arco de sal
a morada
eterna, o mar por onde fugirá
o
etéreo visitante desta noite
não
esqueças o navio carregado de lumes
de
desejos em poeira, não esqueças o ouro
o
marfim, os sessenta comprimidos letais
ao
pequeno-almoço»
Vestígios
«Noutros tempos
quando
acreditávamos na existência da lua
foi-nos
possível escrever poemas e
envenenávamo-nos
boca a boca com o vidro moído
pelas
salivas proibidas, noutros tempos
os
dias corriam com a água e limpavam
os
líquenes das imundas máscaras
hoje
nenhuma
palavra pode ser escrita
nenhuma
sílaba permanece na aridez das pedras
ou
se expande pelo corpo estendido
no
quarto do zinabre e do álcool, pernoita-se
onde
se pode, num vocabulário reduzido e
obsessivo,
até que o relâmpago fulmine a língua
e
nada mais se consiga ouvir
apesar
de tudo
continuamos
a repetir os gestos e a beber
a
serenidade da seiva, vamos pela febre
dos
cedros acima, até que tocamos o místico
arbusto
estelar
e
o
mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa
euforia torrencial»
Poemas
de Al Berto,
in ‘Horto de Incêndio’
In
Al Berto, Horto de Incêndio, Hablar/Falar de Poesia, nº 1, 1997, Assírio e
Alvim, ISBN 978-972-370-410-5.
Cortesia
AAlvim/JDACT