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«(…) A ciência
experimental não foi apenas um tipo de conhecimento que mudou radicalmente o
modo de vida do século XIX e condicionou toda a sua visão do mundo, e de
maneira complexa, mas, irresistível, a estrutura do seu imaginário. Foi a sua
religião. A figura do sábio, que
coincide ou não com a do inventor, distinta da do filósofo se este não é também homem de ciência, ocupava
naquelas culturas onde a criação científica tem uma expressão social
proeminente, na Alemanha, na Inglaterra, na França, o lugar que a Alta Idade
Média reservara ao teólogo. Nãp é sem importância constatar que esta figura não
comparecerá na ficção de Eça senão sob a forma da veleidade, do sonho diletante
de Carlos da Maia. O discurso da verdade, aquele digno de ser tido como tal,
como o declarou um representante típico dessa nova espécie de homem, Marcelin
Berthelot, é o da Ciência: não há mistério para o olhar que a Ciência pousa
sobre o mundo. Tudo o resto é sobrevivência de saberes teológicos ou
metafísicos que estão para o verdadeiro conhecimento como a alquimia está para
a química. No fim do século chamar-se-á cientismo a esta idolatria da Ciência,
mas isso em nada alterou o seu impacto revolucionário sem precedentes na
transformação da sociedade ocidental até então rural ou mercantil em sociedade
organicamente industrial. Sobretudo a partir de 1876, no momento em que a
geração de Eça toma consciência de si mesma e do mundo que a cerca, como
sociedade de massas. É o triunfo da turba e como tal será apercebido, sem entusiasmo,
aliás. Tudo quanto caracteriza hoje, noutro ritmo e com outra potência, a nossa
actual civilização, já é visível e está presente no tempo em que o autor de Os Maias viveu, constituindo o pano de
fundo da sua experiência vital e cultural. Isto é sobretudo exacto para quem
não viveu esse tempo como específico tempo português, o que foi o caso de Eça
de Queirós, pois o nosso não era ainda o de uma sociedade de massas, nem
de revolução científica, e só o foi lá fora, com propriedade, no fim do século,
nas grandes metrópoles. No fim da sua vida, como espectador interessado e
implicado nela, o autor de As Cidades e as Serras foi já contemporâneo dessa
sociedade massificada que não era mero fenómeno quantitativo mas qualitativo pois alterou o estatuto dos
indivíduos na sociedade e, em particular, o estatuto real ou simbólico de que
os artistas e os intelectuais gozavam e de que os representantes da Geração 70 são, entre nós, a mítica e
quixotesca expressão. Mas só Eça foi realmente, na vida e na imaginação, o
habitante desse novo mundo. Contrariamente
à impressão que nos transmitem não só as obras como as vidas de Antero e de
Oliveira Martins, apesar deste último nos parecer também contemporâneo de si
mesmo sob muitos aspectos, só na obra de Eça, graças ao seu extraordinário
mimetismo cosmopolita, nós temos a sensação de viver com ele e através dele o tempo próprio da segunda metade do
século. Século que não foi apenas o da mudança de ritmo na civilização material
e de costumes exteriores mas, sobretudo, um tempo que era ele mesmo nova visão
do mundo, instalando-nos num presente que se sabia e se dizia civilizado e moderno. Ou melhor, que se
inventava como Modernidade. É nesse
tempo novo que a obra de Eça de Queirós nos instala, de maneira sensível, com
uma nitidez e uma familiaridade, por assim dizer, não só mágicas, mas
propriamente míticas. A temporalidade
única desse momento histórico, vital, cultural, está impressa, infiltrada no
tecido da sua ficção e alimenta como sangue escrito cada linha do seu texto. Em
termos cronológicos, nem Camilo, nem mesmo Júlio Dinis viveram num tempo, e,
sobretudo, num tempo português, muito diverso do de Eça de Queirós. O mundo de Uma Família Inglesa, na sua tranquila
visão provincial é um mundo bem aderente ao seu tempo oitocentista, sem
tentações morbidamente melancólicas como o do Romantismo, nem pulsões, ao mesmo
tempo utópicas e autodestrutivas, como o de Eça». In Eduardo Lourenço, As Saias de Elvira
e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.
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