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e wikipedia
«Antes
de começarmos a falar sobre o islão, devemos entender o que ele é e reconhecer certas
distinções no mundo muçulmano. As distinções a que me refiro não são aquelas
convencionais entre sunitas, xiitas e outros ramos da fé islâmica. Falo de agrupamentos
sociais abrangentes definidos pela natureza da observância de cada um.
Subdividirei os muçulmanos. Não subdividirei o islão. O islamismo é um credo
fundamental baseado no Alcorão, as palavras reveladas pelo anjo Gabriel ao
profeta Maomé, e no hadith, as
palavras complementares que descrevem a vida e os ditos do Profeta. Apesar de
algumas diferenças sectárias, esse credo une todos os muçulmanos. Todos, sem
excepção, conhecem de cor estas palavras: testemunho que não há deus senão
Alá; e Maomé é Seu mensageiro. Essa é a Shahada, a profissão de fé
dos muçulmanos. Para ocidentais habituados à liberdade individual de
consciência e religião, a Shahada pode parecer uma declaração de crença
que não difere de qualquer outra. Mas, na realidade, a Shahada é um
símbolo religioso e político. Nos primórdios do islão, quando Maomé ia de porta
em porta tentando persuadir os politeístas a abandonarem o culto a ídolos, ele
os convidava a aceitar que não existia divindade além de Alá e que ele era o
mensageiro de Alá, mais ou menos como Cristo pedira aos judeus para aceitarem
que ele era o filho de Deus. No entanto, após dez anos dessas tentativas de
persuasão, Maomé e seu pequeno grupo de crentes foram para Medina, e a partir
desse momento a missão de Maomé assumiu uma dimensão política. Os não crentes
ainda eram convidados a se submeter a Alá, mas, depois de Medina, os que se
recusassem eram atacados. Se derrotados, davam-lhes a opção de se converter ou
morrer. (Jesus e os cristãos podiam conservar a sua fé caso se submetessem ao
pagamento de um tributo especial.) A Shahada é o símbolo mais
representativo da alma islâmica. Mas actualmente existe uma disputa no islã
pela posse desse símbolo. Quem é o dono da Shahada? Serão aqueles
muçulmanos que desejam dar destaque aos anos de Maomé em Meca, ou os que se
inspiram nas conquistas do seu profeta depois de Medina? Há milhões e milhões
de muçulmanos que se identificam com a primeira dessas alternativas. No
entanto, cada vez mais eles são refutados pelos seus correligionários que
desejam reviver e reconstituir a versão política do islão nascida em Medina, a versão
que transformou Maomé de um andarilho do deserto num símbolo de moralidade
absoluta. Baseada nisso, creio que podemos distinguir três grupos de
muçulmanos.
O primeiro grupo é o mais
problemático. São os fundamentalistas que, quando falam em Shahada,
querem dizer: temos de viver o nosso credo ao pé da letra. Eles almejam
um regime baseado na sharia, a lei religiosa islâmica. Defendem um islão
idêntico ou quase igual à sua versão original do século VII. E mais: consideram
um imperativo da sua fé que ela seja imposta a todos os demais. Fiquei tentada
a chamar esse grupo de muçulmanos milenaristas, pois o seu fanatismo
lembra as várias seitas fundamentalistas que floresceram no cristianismo medieval
antes da Reforma, a maioria das quais combinava fanatismo e violência com o
presságio do fim do mundo. Mas essa analogia é imperfeita. Enquanto a doutrina
xiita aguarda o retorno do décimo segundo imame e o triunfo global do islão, os
fanáticos sunitas tendem a aspirar à criação forçada de um novo califado aqui
na Terra. Por isso, eu os chamarei de muçulmanos de Medina, já que eles consideram
um dever religioso impor a sharia pela força.
O seu objectivo não é apenas obedecer aos ensinamentos de Maomé, mas também
imitar a conduta belicosa do Profeta depois que ele se mudou para Medina. Mesmo
que eles não pratiquem pessoalmente a violência, não hesitam em consentir nela.
São os muçulmanos de Medina que chamam os
judeus e os cristãos de porcos e macacos e pregam que essas duas fés
são falsas religiões, nas palavras de Ed Husain, membro da organização
Council of Foreign Relations (um ex-islamita). São os muçulmanos de Medina que preconizam a decapitação pelo crime
de descrença no islão, a morte por apedrejamento em casos de adultério e
o enforcamento por homossexualidade. São os muçulmanos de Medina que põem as mulheres
em burcas e as espancam se elas saírem de casa sozinhas ou se não se cobrirem
direito. Foram muçulmanos de Medina que, em Julho de 2014, fizeram uma arruaça
violenta em Gujranwala, no Paquistão, incendiaram oito casas e mataram uma
mulher e as suas duas netas, tudo isso porque um jovem de dezoito anos colocou
no Facebook uma foto alegadamente
blasfema». In Ayaan Hirsi Ali, Herege, tradução de Laura Motta e Jussara Simões,
Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2015, ISBN 978-854-380-373-9.
Cortesia
de ESchwarcz/CLetras/JDACT