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e wikipedia
«Numa
aldeia de Trás-os-Montes a chegada de um dos seus filhos emigrados para França,
que vem endinheirado e casado com uma francesa, provoca um verdadeiro
cataclismo. Em França o Valadares, trabalhando na terra como um mouro, é
premiado com a fortuna do patrão desde que case com a filha, moça doidivanas e
descontrolada. Valadares e a mulher vêm a Portugal quando das tradicionais
festas da aldeia. A partir deste momento a perturbação causada pelo
comportamento de ambos, ele, através do dinheiro, buscando uma ingénua e
primitiva glória no seu burgo; ela usando a sedução e a provocação erótica na
fauna masculina aldeã, desencadeia um rol de acontecimentos desgraçados que o
rebate final expressa eloquentemente. A paisagem existe com fauna, flora e
tudo. É a que decorre das suas próprias gentes como penedos que rebolam num
cataclismo através dos precipícios das montanhas. A rua já num rebuliço, a
atrapalharem-se na porta, aos empurrões, primeiro chego eu! O carrão parou com
um solavanco e de dentro, casaco de couro, botas de oficial, saiu o francês,
a gozar a surpresa, a rir. Ó primo! O Manuel, esquecido do inchaço da mão,
batia-lhe com ela nas costas, a remirá-lo, os outros apertando e empurrando
para chegarem mais perto, a quererem tocar-lhe, mostrar-se, alguns
envergonhados, respondendo embaraçados às graças dele, como se fosse milagre
que ainda se lembrasse dos nomes e os tratasse por tu.
A
água do chafariz cai às gotas, e os cântaros, alinhados ao longo do adro,
esperam vez. As mulheres, amodorradas pela tarde, procuram a sombra,
desbragadas, comidas de moscas, protegidas por xailes que foram da mãe,
passados do preto ao verde surro, a assoar neles os fedelhos que o sol não
queima. O meio-dia não é apogeu, é morte, o sino toca a reza sem alegria,
pesado, as mãos fazem o sinal da cruz, as conversas param, o cão levanta-se,
derreado, língua de fora, hesita antes de lamber a água que cai da pia. Passa
ali!, Maria Moreira atira-lhe um pontapé, ergue o cântaro e põe outro sob a
torneira. Até é capaz de ter raiva! Tem é fome. O dono que o sustente. Boa te
vai! Se tivesse para ele! Quem? Chega-se, o cântaro apoiado na anca: Quem? E a
outra num sussurro, os olhos a espiar: o Grande. Gastou tudo! A tia Rita, que
também ouviu, persigna-se, arrepanha o xaile contra os ombros: sempre se
disse!... Quem não se arruma... Nem para adubo. Oh!... É o que faz andar com
elas!... Pobre do cão! Mais contra a parede, a evitar a porta do forno para que
as outras não oiçam, a Moga conta pelos dedos: a uma viu o meu homem.
Trezentos mil réis! Fora comes e bebes! Agora bem se coze. Nos palheiros,
então, um regabofe! Duas. Mãe e filha! O do Gaitas quis tantas porcarias que
até elas... Nossa Senhora!
O
pasmo mata a conversa, separam-se, retoma o cântaro que tinha pousado no chão e
vai rua abaixo curvada com o peso, aproveitando a sombra, cismática, mas se lhe
pergunta não diz, quantas vezes terá também, e então lá por longe aos meses, a
dizer que não tem sorte, que ganha pouco... Entra de través para não bater na
ombreira e o fedor da loja das bestas faz-lhe voltar a cara, passa, sobe a
escada, entorna a água na talha e senta-se, acabada de forças, as mãos a
amparar o ventre. Dar-lhes de comer é que custa!... As camas ao longo da
parede, defronte do lume, separadas dele pelo escano e pela mesa. No outro
lado, atrás da cantareira, a lenha, duas tábuas a fazer de armário, a arca do
pão, entre as camas a arca da roupa e o luxo do casamento: o lavatório com
bacia de esmalte. Bem precisava de pôr outros jornais a cobrir a parede, que os
ratos comem tudo. Dantes bastava pedir, mas agora vendem-nos, não se dá nem aos
pobres, na tenda são a cinco tostões o quilo. Por isso não tinha querido a
mordomia e se lha oferecessem outra vez bem teria de dizer que não. E eles!...
Esfarrapados, sem camisa, alguns nem meias traziam nos pés, mas vinha a festa e
os lordes deitavam-se às mulheres da vida, perdiam a vergonha. Que cansada
estou, meu Deus! Que cansada! As mezinhas e as rezas não ajudavam, engravidava,
és como as coelhas, às ninhadas, com este seis, um fora, um dentro...
Quando nasceram os gémeos julgou que a matava, como se a culpa fosse dela. As
caras que fez!... Mas chamou o médico. Olha, perdido por dez!... Tinha visto a
morte. As pernas inchadas, doridas das voltas à igreja, de joelhos, sem
chumaços, só Nosso Senhor sabia o que lhe tinha custado, há mais de três
semanas e ainda não podia tirar as ligaduras. Estendida na sacristia, o padre
zangado, de cá para lá, vossemecê bem sabe que não é assim que se pede a Deus!
Assim ou assado... Nem pão nem batatas, a tulha rapada, dias compridos, ruins a
passar. A suspeita repentina fê-la pôr em pé, mas não se lembrava e mordeu os
dedos com o esforço de recordar se as trazia com ele na carteira. Entre a
roupa? Eram duas notas de quinhentos... Deitou a correr, o outro cântaro havia
de estar cheio, não esperava pela noite, ia à Ladeira perguntar-lho, nem a
outra lhe importava, nem a pontada, queria saber. Estás como a cera!» In
José Rentes de Carvalho, o Rebate, 1971, Quetzal Editores, 2012, ISBN:
978-989-722-005-0.
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