«É
semana Santa em Sevilha, a semana da Páscoa de paixão e procissões. Um
empresário de renome é encontrado atado, amordaçado e morto em frente da sua
televisão. As feridas autoinfligidas deixam perceber a luta que travou para
evitar o horror das imagens que foi forçado a ver. Quando confrontado com esta
macabra cena, o habitualmente desapaixonado detective de homicídios Javier
Falcón sente um medo inexplicável. O que podia ser tão terrível? A investigação
da vida turbulenta da vítima arrasta Falcón através do seu passado e dos
misteriosos diários do seu falecido pai, um artista mundialmente conhecido.
Revelações dolorosas agitam a memória de Falcón e mais assassinatos ocorrem,
impelindo-o para a revelação da terrífica verdade.
Tens
de olhar, disse a voz. Mas ele não era capaz. Era precisamente quem não podia
olhar para aquilo, porque ia desencadear uma grande actividade naquela parte do
cérebro, a que aparece em vermelho-vivo nas tomografias que se fazem enquanto
se dorme, naquele túnel do labirinto do cérebro a que os leigos chamariam da imaginação
desenfreada. Era uma zona de perigo, que precisava ser bem fechada,
pregada, acorrentada, trancada a cadeado e a chave atirada no lago mais
profundo. Era o beco onde a sua constituição de homem do campo, de ossos largos
e articulações fortes, ficava reduzida à frágil nudez de um adolescente, de
cara enfiada no conforto limitado, duro e escuro de um canto, com as pernas e
as nádegas assadas por se sentar na urina da sua incontinência. Não ia olhar.
Não era capaz. O som vindo da televisão voltou a um filme antigo. Ouvia as
vozes dobradas. Sim, para isso podia olhar. Era capaz de olhar para James
Cagney falando espanhol, com os lábios dizendo palavras que não correspondiam
ao som. A fita zunia no leitor de vídeo, à medida que ia sendo rebobinada, e
deu um estalido ao chegar no princípio. Sentiu se insinuar um horizonte no
fundo da sua cabeça. Náusea? Ou pior? O maremoto do passado a avançar. A
garganta apertou-se, os lábios tremeram, uma turbação afectou o espanhol
transviado de James Cagney. Enrolou os dedos dos pés descalços, agarrou-se aos
braços da cadeira, com os pulsos já cortados pelo cabo que os imobilizava. Os
olhos marejaram e deixaram tudo indistinto. Lágrimas na hora de ir deitar,
disse a voz. Deitar? O cérebro esgrimiu com esse conceito. Deu uma tossidela
abafada, por causa das meias que lhe enchiam a boca. O fim? Era isso que queria
dizer ir deitar? O fim era preferível àquilo. Hora de ir para a cama. Uma cama
infinita, escura, funda. Peço que volte a tentar... A tentar ver. Mas — Peço
que volte a tentar... A tentar ver. Mas antes precisa olhar. Não se pode ver
sem olhar, disse-lhe a voz, devagar ao ouvido. A luz do play piscava vermelha no meio da escuridão. Abanou a cabeça e
apertou os olhos com força. A voz de James Cagney foi engolida pela gargalhada
estrepitosa, o clamor do riso nervoso de um rapazinho. Era uma gargalhada, não
era? Meneou a cabeça de um lado para o outro, como se isso pudesse ensurdecer-lhe
o som, um som confuso que se recusava a acreditar que fosse de agonia, de uma
agonia penetrante. E o soluço final, a impotência, o desfalecimento de quando
acabam as cócegas... Ou seria a tortura? O soluçar. O fôlego arquejante. A
recuperação após a dor. Não está a olhar, disse a voz, zangada. A cadeira
balançou, numa tentativa de se atirar para longe do ecrã, afastando-se do som
perfurante. Voltou o perfeito staccato
espanhol de James Cagney e o som da rebobinagem, a aceleração até ao baque
surdo da fita a chegar ao fim. Eu tenho-me esforçado, disse a voz. Eu estou
sendo paciente e..., razoável. Razoável? Isto é razoável? Atar-me pés e mãos à
cadeira, enfiar as minhas meias malcheirosas dentro da boca. Forçar-me a ver
isto...,oh..., isto... Uma pausa. O impropério resmungado atrás de si. Lenços
de papel sacados da caixa em cima da secretária. De novo aquele cheiro no
quarto. Lembrava-se dele. A sombra negra vinda na sua direcção, não num
farrapo, mas em lenços de papel. O cheiro e o que ele significava. Escuridão.
Adorável escuridão. Dá-ma. Prefiro-a a isto. O forte cheiro característico do
clorofórmio atirou-o outra vez para o espaço». In Robert Wilson, O Cego de
Sevilha, 2003, tradução de Ana Pires e Pedro Pla, Publicações dom Quixote,
Lisboa, 2004, ISBN 978-972-202-615-5.
Cortesia
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