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O
enviado
«(…)
Como se confirmasse tanta beatitude o Guia providenciou os meios para que o inquisidor
pudesse levantar dinheiro. Este introduziu o cartão, carregou nos botões,
seguindo as instruções do Guia. E por iniciativa própria também orou, invocou
poderes e graças divinas. Quando saiu o dinheiro exclamou mais uma vez Senhor
eu não sou digno, frase que ele considerava uma espécie de abre-te sésamo, e
sentiu-se imensamente confirmado na sua importância. Durante alguns dias o Guia
acompanhou-o, fornecendo-lhe aprendizagens e memórias extra, pequenas
engenharias telepáticas, como eram chamadas no local de onde viera. E também
vários outros levantamentos de dinheiro. O inquisidor insistia na sua devoção,
no júbilo místico em que o deixavam aquelas manifestações de magnanimidade divina.
Para com um pobre pecador como eu, repetia, refastelado no orgulho duma
humildade tão perfeita. Quando estava rico e pronto para os ulteriores sucessos
o Guia deixou-o, algum tempo. O tempo para que se desenvolvesse a indispensável
iniciativa própria.
O inquisidor
começou por comprar bens sumptuosos. Um palácio. E terras. Esperava ele os
serviços baratos duma mão-de-obra amedrontada. Não será necessário descrever os
pormenores das suas surpresas e litígios, por facilmente imagináveis. As terras
ficaram abandonadas, no palácio conservou a custo um criado velho, reformado
dum restaurante e bastante alcoolizado. Esta sequência de frustrações foi sendo
entremeada por outros passos: da dúvida do paraíso à congeminação de uma
eventual porta, ou vestíbulo, no qual o candidato às delícias celestes passaria
os exames finais; da congeminação à certeza do purgatório. Chegando a esta certeza,
a actividade mais ou menos intelectual do inquisidor foi tomada de assalto por
uma única emoção, a fúria. Furioso resolveu ele vender o palácio, o recheio e
as terras. E os seus pequenos lapsos de adaptação àquele estranho paraíso
revelaram-se novamente: o espanto substituiu a fúria quando descobriu que
conseguia vender os seus bens pelo triplo do preço porque os comprara. Caiu de
novo de joelhos, bateu no peito, agradeceu a Deus: subiu todos os degraus que
descera, do purgatório à porta do céu, da porta à definitiva morada. Disse
então: Senhor eu reconheço que não desvendei ainda os teus mistérios; não sei o
que fazer com as graças abundantes que me concedeste.
Envia-me
um sinal, para que este teu servo não caia outra vez em erro nem tentação. Foi
então que o Guia do Tempo lhe apareceu novamente, sob uma forma a que poderemos
chamar, talvez, Hermes, por simplificação textual. Para isso servem também os nomes.
Hermes bateu à porta do inquisidor. Trago-lhe bons conselhos, disse. Eis o
sinal que eu esperava, murmurou o inquisidor, o Senhor ouviu-me. Hermes
aconselhou a compra de acções de várias empresas. O inquisidor comprou acções
que subiram, vendeu, comprou mais, vendeu mais. Hermes, tacticamente sujeito às
verdades daquele lugar, disse-lhe então: estamos no cimo, agora as acções vão
descer, não compres mais. O inquisidor riu-se. Teceu considerações
interessantes sobre o simbolismo intricado contido no facto de se designarem
por acções meros pedaços de papel que representavam fatias económicas.
Demonstra este facto que Deus consente que os bons se apropriem dos actos dos
maus, redimindo esses actos mas também ficando com os eventuais méritos e
recompensas, pouco úteis e adequados às más pessoas.
Depois
de tão preclara demonstração o inquisidor riu-se, e exclamou: o Senhor tenta a
minha confiança. E comprou, comprou. As acções, cuja subida era mero produto de
um pequeno grupo de especuladores cuidadosamente accionados por Hermes, caíram
a pique. O inquisidor ficou arruinado, e mais não foi preciso para refazer todo
o caminho anterior de dúvidas, suspeitas e desgraçadas certezas. Recaído no
inferno, achou que Hermes fora o anjo tentador: o demónio. Fui eu sim, que fiz
a última compra e desaconselhado por ele, murmurava passeando nas ruas
desvairado. Mas a tentação é essa subtil criação do hábito, da necessidade, do
vício: sempre obra do demónio. Por isso nunca devemos deixá-lo colocar em nós a
primeira sujidade, a semente. Depois é cada vez mais difícil parar. Só no final
da escalada vemos o que já antes existia, o pecado. Vemo-lo enfim. Antes estava
escondido sob os aparentes bons resultados de nossas acções. Por isso Eva foi
enganada. O inquisidor tinha uma secreta obsessão pelas mulheres, comum a todos
os inquisidores. Até que a última acção duma série aparentemente inocente nos
mergulha na catástrofe. É este o pecado, é esta a morte, foi esta a queda no
princípio. E o inquisidor meditou na gulodice e devassidão de Eva, sentiu
saudades das suas aguerridas inquisições que procuravam extirpar todo o mal
escondido na carne e no sangue dos aparentes inocentes, e não se sentiu consolado».
In
Maria Isabel Barreno, O Enviado (Contos), Editorial Caminho, Lisboa, 1991, ISBN
972-210-574-4.
Cortesia
de ECaminho/JDACT