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Nem
tudo é história
«Noites
e noites a fio, quase de madrugada, desenrolava-se a mesma cena: um grande
automóvel preto, um carro americano de antes da guerra, talvez um De Solo dos
anos trinta, parava de repente ao pé de mim. O motorista, fardado de negro,
mantinha-se muito hirto no seu lugar; eu não chegava sequer a ver-lhe o rosto.
Mais me intrigava aliás o próprio carro, que parecia ter estado debaixo de água,
ou de ter sido fabricado no fundo do mar, embora não apresentasse, na
carroçaria, nenhum vestígio de humidade. Mas o capar faiscava, na
sombra, como o dorso de um cetáceo; o flanco fusiforme dos faróis denunciava
não sei que secreto comércio com os peixes; e a porta de trás, que vinha agora
de entreabrir-se, sem que ninguém lhe houvesse tocado, evocava
irresistivelmente, pelo crebro palpitar em que ficara, o inquietante mistério
de uma guelra. Dentro, na outra extremidade do banco, reclinava-se um vulto de
mulher cingido num vestido de lamé. Era um vestido de noite, de modelo
já antiquado, que por inteiro lhe ocultava as pernas e os pés: a partir da
cintura, todo fosforescia, como a cauda de uma sereia. Havia, no porte dessa
mulher, qualquer coisa de hierático, e ao mesmo tempo qualquer coisa de irónico,
como se quisesse mostrar, por uma espécie de jogo que não chegava a tomar a
sério, o reverso daquilo que era, o reverso daquilo que sentia. Dir-se-ia que
se prestara a servir de modelo, diante de um pintor académico, para um retrato
muito convencional, apenas com o fim de troçar intimamente do pintor e do retrato,
de si própria e da pose que adoptara. Entre os dedos da mão esquerda, que
vinha, enluvada de preto, descansar-lhe no regaço, apertava as varetas cerradas
de um leque de marfim. A mão direita, igualmente mergulhada numa luva preta de
canhão alto, firmava-se no assento do banco. E era tão-só com um gesto
negligente desta mão, tão-só com a rotação lentíssima do pulso, que me saudava
e convidava a entrar, que me apontava o lugar a seu lado. Então, mal eu me
sentava, sem um ruído o carro punha-se em marcha. E sempre assim, noites e
noites a fio. Só depois se interpolavam, de noite para noite, pequenas variantes
no percurso. Por vezes, rolávamos longamente através de ruas desertas, ou que
pareciam desertas por causa do nevoeiro, e eu percebia que já estávamos fora da
cidade, à medida que rareavam as casas, que aumentavam de número as silhuetas
das árvores, que o nevoeiro se espraiava em remoinhos mais amplos. A estrada,
sem uma curva, subia sempre, de tal modo que o corpo se me incrustava, mais e mais,
no assento do carro, a ponto de estabelecer-se, entre as minhas costas e as
costas do banco, aquele pacto de secreções comuns que deve firmar-se, com
certeza, entre o molusco e o interior da concha a que se prende. Com a minha
companheira passar-se-ia também o mesmo; ou mais ainda: desde a penumbra da sua
nuca aos artelhos invisíveis, não se lhe vislumbrava, em todo o corpo, senão a
tenuíssima cadência vibratória do próprio carro em que seguíamos. Continuava
com a mão direita apoiada no rebordo do banco; e mantinha-se, entre nós dois,
uma distância de cerca de dois palmos. Depois de eu me ter sentado, nem por um
instante olháramos um para o outro. Eu sabia, aliás, que o seu rosto se esfumava
numa quase completa obscuridade, que nem me seria possível distinguir-lhe as
feições, que descobriria quando muito, acima do pescoço, o halo nevoento de um
sorriso. Os pneus do automóvel principiavam a rodar em falso. Atingíramos a
orla de um extenso areal; ou, mais propriamente, a saibrosa fronteira do
planalto de uma duna. A parte dianteira do carro afocinhara na areia; logo a
seguir, porém, cindia-se do resto do veículo, como se houvera sido previamente serrada,
e lentamente começava a descer, diante de nós, em sentido oblíquo, transformada
na cabina de um funicular. Assim acabava por sumir-se, inteiramente devorada
pelo próprio túnel que fora abrindo. O dorso negro do motorista era a
derradeira mancha a desaparecer. E ficávamos ambos, tu e eu, miseravelmente
aliviados com esse desaparecimento. Traiçoeiramente, a coberto da névoa, o mar
tinha chegado até junto de nós. Estremecias, num súbito arrepio. Eu colocava
então a mão esquerda sobre os dedos enluvados da tua mão direita. Em cima, no
antebraço, quase ao redor do cotovelo, o tecido da luva começava a estalar. E
dissipava-se pouco a pouco o nevoeiro: íamos vendo, alinhadas em fila, a nosso
lado, outras metades de automóvel como aquela em que nos encontrávamos. Em tudo
o mais, o cenário habitual de uma praia do mar do Norte. Diante, erguia-se
também, de sobre o mar, a neblina que o limitava. As ondas, cor de chumbo, passavam
a nascer cada vez mais longe. Mas era sempre em hemiciclo que o líquido
anfiteatro ganhava profundidade. Não tardava, porém, a desenhar-se no horizonte
uma súbita margem: era a continuação do mesmo areal, a repetição das mesmas
capotas alinhadas, o mesmo cenário de uma praia do mar do Norte. E a luva, que
não cessara de estalar numa crepitação de folhas secas, mostrava agora o início
de um rasgão ao longo do antebraço. Já se entreabriam, mais para além, outras
ondas cor de chumbo; já um segundo anfiteatro ia surgindo; já despontava, por
sua vez, uma terceira língua de areia. E progredia, ao longo do antebraço, a
caminho do pulso, o rasgão vertical no tecido da luva. Outro lago, mais outro,
outro ainda: sempre em forma de anfiteatro. Vinte, quarenta, cem, trezentos
lagos. Em frente, à esquerda, à direita, em todas as direcções. E por entre
esses lagos, alongando-se até ao infinito, um labirinto de línguas de areia. O
rasgão, entretanto, bifurcara-se em delta por cima dos cinco dedos. Mas era
afinal a minha mão, coberta de sangue, que saía do interior dessa luva rasgada».
In
David Mourão-Ferreira, Os Amantes e Outros Contos, 1968, Editorial Presença, colecção
Grandes Narrativas, 1992/2006, ISBN 978-972-231-584-5.
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