quinta-feira, 10 de março de 2016

Os Amantes. David Mourão Ferreira. «Em tudo o mais, o cenário habitual de uma praia do mar do Norte. Diante, erguia-se também, de sobre o mar, a neblina que o limitava. As ondas, cor de chumbo, passavam a nascer cada vez mais longe»

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Nem tudo é história
«Noites e noites a fio, quase de madrugada, desenrolava-se a mesma cena: um grande automóvel preto, um carro americano de antes da guerra, talvez um De Solo dos anos trinta, parava de repente ao pé de mim. O motorista, fardado de negro, mantinha-se muito hirto no seu lugar; eu não chegava sequer a ver-lhe o rosto. Mais me intrigava aliás o próprio carro, que parecia ter estado debaixo de água, ou de ter sido fabricado no fundo do mar, embora não apresentasse, na carroçaria, nenhum vestígio de humidade. Mas o capar faiscava, na sombra, como o dorso de um cetáceo; o flanco fusiforme dos faróis denunciava não sei que secreto comércio com os peixes; e a porta de trás, que vinha agora de entreabrir-se, sem que ninguém lhe houvesse tocado, evocava irresistivelmente, pelo crebro palpitar em que ficara, o inquietante mistério de uma guelra. Dentro, na outra extremidade do banco, reclinava-se um vulto de mulher cingido num vestido de lamé. Era um vestido de noite, de modelo já antiquado, que por inteiro lhe ocultava as pernas e os pés: a partir da cintura, todo fosforescia, como a cauda de uma sereia. Havia, no porte dessa mulher, qualquer coisa de hierático, e ao mesmo tempo qualquer coisa de irónico, como se quisesse mostrar, por uma espécie de jogo que não chegava a tomar a sério, o reverso daquilo que era, o reverso daquilo que sentia. Dir-se-ia que se prestara a servir de modelo, diante de um pintor académico, para um retrato muito convencional, apenas com o fim de troçar intimamente do pintor e do retrato, de si própria e da pose que adoptara. Entre os dedos da mão esquerda, que vinha, enluvada de preto, descansar-lhe no regaço, apertava as varetas cerradas de um leque de marfim. A mão direita, igualmente mergulhada numa luva preta de canhão alto, firmava-se no assento do banco. E era tão-só com um gesto negligente desta mão, tão-só com a rotação lentíssima do pulso, que me saudava e convidava a entrar, que me apontava o lugar a seu lado. Então, mal eu me sentava, sem um ruído o carro punha-se em marcha. E sempre assim, noites e noites a fio. Só depois se interpolavam, de noite para noite, pequenas variantes no percurso. Por vezes, rolávamos longamente através de ruas desertas, ou que pareciam desertas por causa do nevoeiro, e eu percebia que já estávamos fora da cidade, à medida que rareavam as casas, que aumentavam de número as silhuetas das árvores, que o nevoeiro se espraiava em remoinhos mais amplos. A estrada, sem uma curva, subia sempre, de tal modo que o corpo se me incrustava, mais e mais, no assento do carro, a ponto de estabelecer-se, entre as minhas costas e as costas do banco, aquele pacto de secreções comuns que deve firmar-se, com certeza, entre o molusco e o interior da concha a que se prende. Com a minha companheira passar-se-ia também o mesmo; ou mais ainda: desde a penumbra da sua nuca aos artelhos invisíveis, não se lhe vislumbrava, em todo o corpo, senão a tenuíssima cadência vibratória do próprio carro em que seguíamos. Continuava com a mão direita apoiada no rebordo do banco; e mantinha-se, entre nós dois, uma distância de cerca de dois palmos. Depois de eu me ter sentado, nem por um instante olháramos um para o outro. Eu sabia, aliás, que o seu rosto se esfumava numa quase completa obscuridade, que nem me seria possível distinguir-lhe as feições, que descobriria quando muito, acima do pescoço, o halo nevoento de um sorriso. Os pneus do automóvel principiavam a rodar em falso. Atingíramos a orla de um extenso areal; ou, mais propriamente, a saibrosa fronteira do planalto de uma duna. A parte dianteira do carro afocinhara na areia; logo a seguir, porém, cindia-se do resto do veículo, como se houvera sido previamente serrada, e lentamente começava a descer, diante de nós, em sentido oblíquo, transformada na cabina de um funicular. Assim acabava por sumir-se, inteiramente devorada pelo próprio túnel que fora abrindo. O dorso negro do motorista era a derradeira mancha a desaparecer. E ficávamos ambos, tu e eu, miseravelmente aliviados com esse desaparecimento. Traiçoeiramente, a coberto da névoa, o mar tinha chegado até junto de nós. Estremecias, num súbito arrepio. Eu colocava então a mão esquerda sobre os dedos enluvados da tua mão direita. Em cima, no antebraço, quase ao redor do cotovelo, o tecido da luva começava a estalar. E dissipava-se pouco a pouco o nevoeiro: íamos vendo, alinhadas em fila, a nosso lado, outras metades de automóvel como aquela em que nos encontrávamos. Em tudo o mais, o cenário habitual de uma praia do mar do Norte. Diante, erguia-se também, de sobre o mar, a neblina que o limitava. As ondas, cor de chumbo, passavam a nascer cada vez mais longe. Mas era sempre em hemiciclo que o líquido anfiteatro ganhava profundidade. Não tardava, porém, a desenhar-se no horizonte uma súbita margem: era a continuação do mesmo areal, a repetição das mesmas capotas alinhadas, o mesmo cenário de uma praia do mar do Norte. E a luva, que não cessara de estalar numa crepitação de folhas secas, mostrava agora o início de um rasgão ao longo do antebraço. Já se entreabriam, mais para além, outras ondas cor de chumbo; já um segundo anfiteatro ia surgindo; já despontava, por sua vez, uma terceira língua de areia. E progredia, ao longo do antebraço, a caminho do pulso, o rasgão vertical no tecido da luva. Outro lago, mais outro, outro ainda: sempre em forma de anfiteatro. Vinte, quarenta, cem, trezentos lagos. Em frente, à esquerda, à direita, em todas as direcções. E por entre esses lagos, alongando-se até ao infinito, um labirinto de línguas de areia. O rasgão, entretanto, bifurcara-se em delta por cima dos cinco dedos. Mas era afinal a minha mão, coberta de sangue, que saía do interior dessa luva rasgada». In David Mourão-Ferreira, Os Amantes e Outros Contos, 1968, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 1992/2006, ISBN 978-972-231-584-5.

Cortesia EPresença/JDACT