jdact e wikipedia
«Em Abril de 1953, menos de um ano antes de
morrer aos 47 anos de idade, Frida Kahlo ganhou a primeira grande exposição das
suas pinturas na sua terra natal, o México. Naquela altura a sua saúde estava
tão deteriorada que ninguém esperava que ela conseguisse comparecer à estreia. Porém,
às oito da noite, pouco antes da abertura das portas da Galeria de Arte
Contemporânea da Cidade do México, uma ambulância aparece. A artista, usando o seu
traje mexicano tradicional favorito, foi tirada do veículo e levada para dentro
da galeria numa maca, até ser acomodada na sua cama de quatro colunas, que
havia sido instalada na galeria naquela tarde. A cama estava adornada da
maneira como ela gostava, com fotografias do marido, o grande muralista Diego
Rivera, e dos seus heróis políticos, Malenkov e Stálin, esqueletos de papel
maché pendurados no dossel, em cuja parte inferior havia um espelho afixado
que reflectia o rosto de Frida, alegre, ainda que devastado pela doença. Um a
um, centenas de amigos e admiradores fizeram fila para cumprimentar Frida
Kahlo, depois formaram um círculo em volta da cama e cantaram baladas mexicanas
até bem depois da meia-noite. O episódio a um só tempo resume e representa o
ponto culminante da carreira dessa mulher extraordinária. A bem da verdade,
esse evento comprova muitas das qualidades que marcaram Kahlo como pessoa e
como pintora: a sua bravura e indomável alegria em face do sofrimento físico; a
insistência na surpresa e na especificidade; o seu amor peculiar pelo espectáculo
como máscara para preservar a privacidade e a dignidade pessoal. Acima de tudo,
a estreia da sua exposição dramatizava o tema central de Frida Kahlo, ela
mesma. A maioria dos cerca de duzentos quadros que ela produziu na sua curta
carreira é de auto-retratos. Frida começou com um material formidável e
impactante: quase bonita, ela tinha pequenos defeitos que só faziam aumentar o seu
magnetismo. As suas sobrancelhas formavam uma única linha ao longo da testa e
sua boca sensual era encimada pela sombra de um buço. Os seus olhos eram negros
e amendoados, ligeiramente inclinados para cima nas extremidades. As pessoas
que a conheciam bem dizem que a inteligência e o humor de Frida brilhavam
naqueles olhos; dizem também que os olhos revelavam o seu estado de ânimo:
devorador, fascinante, sedutor, céptico, desmoralizante ou destruidor. E na
franqueza do seu olhar fixo havia algo que fazia com que os seus interlocutores
se sentissem desmascarados, como se estivessem sob a vigilância atenta de uma jaguatirica. Quando Frida ria, era com carcajadas,
gargalhadas profundas e contagiantes que explodiam ou como sinal de felicidade
ou de reconhecimento fatalista do absurdo da dor. A sua voz era bronca,
um pouco rouca. As palavras desabavam de sua boca, intensamente, enfaticamente,
velozmente, pontuadas por gestos rápidos e graciosos, risadas de barriga cheia,
e ocasionais gritos agudos de emoção. Em inglês, que ela falava e escrevia com
fluência, Frida tendia a usar gírias. Lendo as suas cartas hoje, impressiona o
que uma amiga dela chamou de as durezas ou asperezas de seu vernáculo; é
como se ela tivesse aprendido inglês com Damon Runyon. Em espanhol, ela adorava
usar linguagem chula, palavras como pendejo (que, em tradução polida,
quer dizer estúpido) e hijo de su chingada (filho da pu…). Em
ambas as línguas, ela saboreava o efeito sobre a sua plateia, efeito ampliado
pelo facto de que esse vocabulário de sarjeta era proferido por uma
criatura de aparência tão feminina, de cabeça altiva no pescoço comprido, com
ares nobres de rainha. Ela vestia-se com roupas vistosas e dava preferência
especialmente a compridos trajes mexicanos nativos, em detrimento de peças de
alta-costura. Aonde quer que fosse, Frida causava sensação. Um nova-iorquino
relembra que as crianças seguiam Kahlo pela rua, gritando, onde é o circo?
Ela ficava indiferente». In Hayden
Herrera, Frida (a biografia), 1983, tradução de Renato Marques, Editora Globo, São
Paulo, 2011, ISBN 978-852-505-353-4.
Cortesia da EGlobo/JDACT