«Deitada num tapete de caruma, via o Sol
através dos ramos, para lá das pinhas recortadas, das copas que acenavam. Sim,
sim... Vinha-lhe à lembrança outro dia, outro lugar, com o cheiro dos pinheiros
e a acidez da resina no nariz. A areia debaixo dos pés, o mar por perto, não
muito distante do búzio que levava ao ouvido para ouvir as ondas. Estava a
fazer o que aprendera há anos. Esquecer. Apagar tudo. Escrever de novo os
pequenos parágrafos da sua história pessoal. Pintar um quadro diferente da
última meia hora, desde o momento em que se virara e sorrira à pergunta sabe
dizer-me como...? Não era fácil o trabalho de esquecer. Mal acabava de esquecer
uma coisa e de a escrever a seu gosto, logo aparecia outra a precisar de
correcção. E acabava sempre por chegar à única coisa em que não queria pensar,
que estava a esquecer-se de quem era. Mas desta vez, mal a ideia lhe surgiu,
soube que o melhor para ela era viver no momento presente, avançar apenas
milímetro a milímetro. Vou ficar com as agulhas de pinheiro tatuadas nas pernas,
foi o mais longe a que chegou no momento presente. Uma brisa fresca
recordou-lhe que perdera as calcinhas. Doía-lhe o peito que o soutien trilhava.
Uma ideia perseguia-a: ele vai voltar. Viu na minha cara..., viu na minha cara
que o conheço. E conhecia-o, mas não sabia identificá-lo, não sabia quem ele
era. Virou-se de lado e sorriu, o ruído parecia o dos cereais do pequeno-almoço
ao ser-lhes deitado o leite. Pôs-se de joelhos e agarrou-se à casca rugosa do
pinheiro com as pontas ásperas dos dedos, unhas roídas até ao sabugo, uma delas
com um fiozinho de sangue ainda húmido. Sacudiu a caruma do cabelo loiro e
liso, e foi então que ouviu os passos. Passos pesados. Botas em relva coberta
de geada? Não. Mexe-te. Mas o medo não a deixava mexer. O medo nunca a deixava
mexer-se. Uma imagem rápida passou-lhe no espírito, como num filme, e viu uma
garotinha loira sentada nas escadas, a chorar e a fazer chichi pelas pernas
abaixo, porque ele a tinha escorraçado e ela não suportava ser escorraçada. O
impulso. A raiva. A onda de terrível energia. O vento a subir os degraus, a
assobiar por baixo da porta. O reunir de forças para deferir o golpe. Portas a
bater dentro de casa, ao longe. O estouro. O estouro de uma melancia a cair
sobre as lajes. A casca despedaçada. A polpa cor-de-rosa. O cabelo loiro
tingiu-se de vermelho. A linha do crânio estalou. A casca da árvore feriu-lhe
um canto da testa. Os grandes olhos azuis comtemplavam o vale negro.
15 de Fevereiro de 1941
Escurecera muito cedo, mesmo atendendo à
época do ano. Nuvens de neve, baixas e pesadas como zepelins, tinham feito as
ordenanças acorrer mais cedo à messe para correr os cortinados do blackout. Não
que fosse necessário, simples questão de rotina. Nenhum bombardeiro descolaria
com um tempo destes. Nenhum tinha aparecido desde o Natal. Um criado da messe,
de jaqueta branca e calças pretas, pousou uma bandeja de chá diante do homem
vestido à paisana, que não levantou os olhos do jornal que não lia. O criado
esperou um momento e depois saiu com as ordenanças. Lá fora a neve camuflava em
silêncio o subúrbio e o seu peso acumulado ia nivelando crateras, cimentando
ruínas, alisando os sulcos enlameados dos carros, pintando as estradas negras
de uma brancura uniforme. O civil serviu-se duma chávena de chá, tirou do bolso
uma cigarreira de prata e dela um cigarro turco de tabaco preto. Bateu a ponta
sem filtro no tampo da cigarreira, gravado com as iniciais KF em letras
góticas, e colou a mortalha seca ao lábio inferior. Acendeu um isqueiro de
prata, este com as iniciais EB, um pequeno furto temporário. Pegou na chávena. Chá,
pensou. Que era feito do bom velho café? O tabaco bem prensado crepitou quando
ele aspirou profundamente, a querer sentir pulsar o sangue nas veias. Sacudiu
dois pontinhos brancos de cinza do seu fato preto novo. O peso do tecido e a
precisão do corte judaico trouxeram-lhe à lembrança a razão de já não estar a
gostar muito do cenário. Aos 32 anos era um empresário, um industrial de
sucesso, ganhando mais dinheiro do que alguma vez sonhara. Mas agora tinha
aparecido um obstáculo a que continuasse a ganhar dinheiro. As SS. Essa gente
não podia ele sacudir. Essa gente era a razão de ele ter trabalho, a razão de a
sua fábrica, a Neukölln Kupplungs Unternehmen, manufactura de atrelagens para
comboios, trabalhar em pleno, a razão de ele ter já encomendado a um arquitecto
o projecto das ampliações. Era um Förderndes Mitglied, um membro
patrocinador das SS, o que significava que lhe era dado o gosto de levar homens
de uniforme negro a conhecer a vida nocturna berlinense e eles se encarregavam
de lhe arranjar trabalho. Nada que se comparasse a ser um Freunde der
Reichsführer-SS, mas trazia as suas vantagens para o negócio..., e, como
estava agora a perceber, as suas obrigações. Há dois dias que convivia com os
cheiros institucionais da couve cozida e do polimento de botas no quartel de
Lichterfelde, errando num labirinto militar de Oberführers, Brigadeführers e
Gruppenführers. Quem eram aqueles homens que ostentavam uma caveira no uniforme
e faziam perguntas intermináveis? Que fariam eles todo o santo dia, quando não
estavam a esquadrinhar-lhe os avós e os bisavós? Estamos em guerra com o mundo
inteiro, e o que lhes interessa é a minha árvore genealógica! Não era o único
candidato. Estavam lá outros industriais, um dos quais seu conhecido. Todos do
sector metalúrgico. Tinha esperado que fossem considerá-los para a adjudicação
dum contrato, mas nenhuma pergunta se relacionava com questões técnicas, eram
todas de avaliação de carácter, o que significava que se tratava de um cargo. Um
ajudante-de-campo, oficial-às-ordens, ou lá como se chamavam esses tipos,
entrou e fechou a porta atrás de si com o cuidado dum bibliotecário. O estalido
preciso da lingueta e o aceno de cabeça satisfeito do recém-chegado fizeram a
irritação começar a subir-lhe à cabeça. Herr Felsen, disse o oficial, sentando-se
em frente do civil de cabelo escuro que enristava os ombros largos. Klaus
Felsen sacudiu o pé rígido, levantou a possante cabeçorra de suábio e
pestanejou devagar, fixando no homem os olhos azul-acinzentados, por baixo da
falésia encrespada da testa. Está a nevar, foi o que disse». In Robert Wilson,
Último Acto em Lisboa, 1999, tradução de Maria Douglas, Gradiva Publicações, Lisboa,
2004, ISBN 978-972-662-762-1.
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