Cortesia
de wikipedia (Ernst Hackwell)
«Para
o primeiro, para os que quebraram o meu coração, os que mostraram as músicas e
os livros, para quem eu escrevi milhares de palavras em segredo, para o que me
colocou no mundo, para o que me ensinou sobre a vida, para os que vieram antes,
para os que virão depois».
«Ele
disse que, ao contrário do que eu pensava, eu nunca seria mulher de um homem
só. Nunca de um homem só. (Nem dele)»
«Olhou
para mim, olhei para o lado. Como descobriria depois, odeio ser encarada.
Detesto que me olhem nos olhos, embora fale com as pessoas como se pudesse
enxergá-las por dentro. Ele olhou-me, tirou a franja do meu rosto com a mão,
pediu desculpas por isso, mas disse que estava dando agonia ver-me pela metade.
Perguntou porque bebia cachaça, e falei que era porque gostava. Ele disse que
isso bastava e pediu uma também. Não se lembrava do meu nome, disse. Mas não
havia perguntado. Quis saber quantos anos eu tinha e interrompeu-me antes que
eu respondesse. Perguntou se eu morava perto e descobriu que sim, moro a duas
ruas do seu hotel. Viu o prato que eu pedi chegar e a minha primeira garfada
nervosa, morta de fome depois de um dia inteiro. Olhou nos meus olhos e disse
que achava incrível jantar com uma mulher que suspirava enquanto comia.
Enquanto é comida também, pensei. Depois que fosse embora, e me deixasse com a
droga deste pacote completo, de olhares e desculpas banais, por encostar em
você em qualquer lugar, e o te… absoluto e a vontade de te morder, de prender
com as pernas e falar baixinho, que se deixasse eu invadiria a sua vida, sorriria
pra mim com essa cara de lenhador de história infantil, meio ogro, meio
príncipe, e iria embora, levando um pedaço do meu coração em cada mão. Quando
chegasse lá, me escreveria uma carta dizendo: por favor, chérie, não se apaixone por mim. E é apenas por isso que às vezes
eu fico em silêncio. Nesse entretanto, ele veio. E disse que trocou de estado
para me ver, que deixou o livro para me ver, que pegou um avião para me ver,
sem me perguntar o que eu estaria deixando para trás para vê-lo. Não muita
coisa, na verdade, mas incomodou-me um pouco o facto dele se vangloriar tanto
por ter vindo. Isso é sinal de que eu merecia de alguma forma? Na verdade o que
eu quero é que ele me admire, que goste do que escrevo, ao invés de ser mais
uma bonitinha que valha a pena uma viagem interestadual. Não sei. Sei
que ele veio e não mudou muita coisa por aqui. Foi embora num outro avião e eu
que me virasse com o que tivesse sobrado para mim, além de garrafas vazias,
cigarros e papéis escritos e amassados pelos quartos da casa. Writer’s bullshit, e é o que me toca,
não preciso falar de novo a espécie de clichê no qual me enquadro. No clichê
que você me aprisionou.
É
sábado de manhã e eu acabei de tomar o café. A vizinha faz barulhos como
sempre, a casa precisa de cortinas, pratos limpos e definitivamente não precisa
de barulho. Sábado de manhã é o único momento em que eu consigo ver a luz sépia
que entra pela janela da sala e eu não quero nada além disso. É sábado e eu
posso escutar música sem os auscultadores, e coloco Billie para cantar Blue Moon, porque me disseram que hoje
vai aparecer no céu a maior lua dos últimos 20 anos. É sábado e eu finalmente
tenho tempo para pensar em como seria. Nós dois juntos. Porque me permito a
saliência de criar uma vida à distância e vejo-o acordando cedo para correr e
me deixando na cama, e depois me acordando p’ra visitar os seus pais, e me levando
na feira daquela rua e para aquele restaurante polonês all you can eat. Me deixará sozinha à noite para escrever enquanto
eu já teria alguns amigos na cidade e sairia para dançar. O meu livro
acontecendo aos poucos e você fazendo cara de surpresa por eu de facto ter
algumas amigas que consideram alguma coisa nesta literatura menor que é falar
de si mesma enquanto você não entende o quanto de material você me dá e o
quanto este nosso colchão atirado para o chão do quarto parece mais ficcional
do que qualquer história inventada. Não seríamos felizes. Eu ter-me-ia apaixonado
por você de novo (como da primeira vez, dois anos atrás), um homem que não sabe
amar, mas que merece um afago por ter tentado, e eu amaldiçoando o seu passado,
que amaldiçoou no mesmo no dia em que ela te deixou». In Paula Gicovate, Este é um
Livro sobre o Amor, Editora Guarda-Chuva, (Ernst Hackwell), 2014, ISBN
978-859-953-734-2.
Cortesia
de EGChuva/JDACT