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Ano
da Era do Senhor de 824. A origem de tudo
«(…) Teodomiro passou os três dias
seguintes, e as respectivas noites, orando e caminhando de um lado para o
outro, sem beber uma gota de água e comendo apenas, ocasionalmente, uma peça de
fruta ou castanhas assadas na brasa para minorar a fraqueza que a abstinência
lhe provocava no corpo. Havia anos, sobretudo desde que tinha sido nomeado
bispo, que não fazia um jejum tão prolongado, pelo que o seu corpo estava pouco
habituado a esse sacrifício e a sua fraqueza aumentava a cada hora que passava.
A sua alimentação sempre fora frugal, mas não privava o estômago de pratos
requintados nem de bom vinho. Ao anoitecer do terceiro dia, Martín Bilibio
dormitava um sono inquieto quando abriu os olhos e viu o bispo conversando com
Paio ao longe. Sentou-se, aturdido, e perguntou-se o que estaria o eremita a
dizer a Sua Eminência. Teodomiro ouvia com atenção as palavras do seu interlocutor.
Martín levantou-se cambaleante e dirigiu-se a eles, convencido de que aquele homem
empenhado em desencantar algum milagre para seu proveito pessoal estaria a
molestar o seu senhor. Contudo, para sua surpresa, calaram-se quando o viram
aproximar-se. Eminência, passa-se alguma coisa?
Nada que possa resolver, Martín,
retorquiu Teodomiro, esquivando-se a uma resposta mais concreta. Paio olhou de
través para Martín e afastou-se, com uma atitude de quem tinha sido
interrompido pela presença do monge. É melhor verificar se o meu espírito está
preparado para receber a mensagem de Deus..., murmurou o bispo. Se é que há
alguma mensagem divina a receber. As suas palavras pareciam cansadas, pouco
animadas. Dirigiram-se ao local que Paio lhes tinha indicado alguns dias antes,
atravessando a penumbra do bosque por um bocado. O ambiente era muito húmido e
o ar parecia mais espesso por causa da neblina rente à terra. Teodomiro seguia
alguns passos mais adiante. Atrás de si iam o seu fiel escriba Martín Bilibio
e, ao lado deste, colocara-se Paio, atento a todas as reacções do bispo. De
repente, Teodomiro julgou ver sair da terra pequenas luminárias em movimento.
Surpreendido, nada disse e manteve-se calado, com receio de que se tratasse
apenas de alucinações causadas pelo estado de fraqueza em que se encontrava.
Abriu e fechou os olhos e avistou algumas mais.
Eram como resplendores na
escuridão, umas luzes pálidas esverdeadas ou azuladas, tão leves e subtis que
pareciam flutuar no vazio do ar, quase rente ao solo. Ouviu a respiração de
Martín e de Paio, que o seguiam de perto, num silêncio prudente. Vistes aquilo?,
acabou por perguntar, convencido de que havia algo estranho naquelas
luminescências. É a prova, senhor meu!, respondeu Paio, adiantando-se. É o ignis fatuus, interveio Martín Bilibio,
em tom calmo. Ocorre amiúde nos cemitérios ou em zonas pantanosas e muito
húmidas. E a que se deve o fenómeno? Não sei exactamente, Eminência. Há muitas
lendas sobre a sua origem: alguns dizem que são almas penadas que vagueiam na
escuridão para se limparem dos seus pecados, outros dizem que são almas de
recém-nascidos mortos que se encontram entre o Céu e o Inferno. Também já ouvi
dizer que são os espíritos maus à espera dos incautos que entram em campos santos
à noite para lhes roubarem as almas...
É o sinal, senhor!, insistiu Paio. É
Deus que vos fala... O que é que tu achas, Martín?, perguntou o bispo sem ligar
às palavras do eremita. Tens alguma explicação para estas..., luzes? Eu,
senhor?!, perguntou Martín, surpreendido com a pergunta. Bem..., não tenho
provas de nada, mas ouvi um sábio dizer que estas luzes são provocadas pela
putrefacção dos corpos, e talvez seja por isso que se vêem nos campos santos. Teodomiro
olhou-o por momentos, com um ar reticente. O seu olhar continuou a penetrar a
neblina, observando de vez em quando, essas luzes pálidas refulgentes que iam
aparecendo aqui e ali, das quais tentava aproximar-se sem nunca o conseguir,
porque ou pareciam afastar-se ou desapareciam engolidas pelo ar. Paio, ouvi dizer
que nesta zona existiu um cemitério? Sabes alguma coisa disto? Eminência, há
quem o afirme. De facto, existe um lugar, ali, atrás daqueles matagais, onde já
me pareceu ver a entrada de um túmulo. Mas entraste? Não, senhor, porque o
acesso é intransponível para as minhas poucas forças. Mostra-me esse lugar. Martín
Bilibio não percebeu porque é que aquele eremita não tinha falado daquilo
antes.
Seguiram-no até aos matagais para
que apontava. Aqui está!, exclamou o eremita enquanto afastava a vegetação com
a mão. Paio e Martín aproximaram as tochas que levavam na mão. O túmulo estava
tão escondido pela vegetação frondosa daquela paisagem que era quase impossível
dar com ele para quem não soubesse onde se encontrava. À primeira vista,
parecia tratar-se de um monumento de pedra e terra, de pequenas dimensões e
cujo acesso, ao que parecia, se encontrava firmemente selado. Tentaram arrancar
as ervas, mas essa era uma tarefa inútil, visto que estavam profundamente
enraizadas na terra em redor do túmulo. Algo impaciente, Teodomiro dirigiu-se a
Martín Bilibio. Martín, ordena aos soldados que limpem a área em torno do túmulo.
É a única forma de sabermos se isto é realmente o que parece. Martín afastou-se
do local para ir chamar os soldados, que permaneciam tranquilos junto ao
oratório de Paio. Quando o viram, ergueram-se a custo. Era noite e não tinham
muita vontade de deambular por bosques dos quais tinham ouvido dizer coisas
estranhas. Não obstante, pegaram nas tochas e seguiram Martín. Quando estava a
chegar ao lugar do túmulo, viu Teodomiro conversando novamente com Paio mas,
desta feita, pareciam discutir sobre alguma coisa. Achou aquilo estranho.
Acelerou o passo para tentar ouvir sobre que falavam mas, para sua surpresa
calaram-se assim que o viram, tal como da primeira vez. O bispo chegou,
inclusivamente, a tentar disfarçar o seu evidente estado acalorado mas em vão. Passa-se
alguma coisa, Eminência?, perguntou Martín ao bispo, enquanto se aproximava.
Nada, Martín, não se passa nada». In Paloma Sanchez-Garnica, A Alma das
Pedras, tradução de Miguel Coutinho, Saída de Emergência, 2010, ISBN
978-989-637-288-0.
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